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Bate-Seba: enfrentando abuso e assédio em nossos dias

Pastor Anselmo Melo

Primavera é a época das flores, do romance, das viagens, dos casamentos. Sua beleza colorida e sua brisa fresca encantam e fascinam todos os que param para admirá-la e aproveitá-la. Quando pensamos nessa estação provavelmente visualizamos campos floridos, passarinhos cantando alegremente, casais andando de mãos dadas, trocando juras de amor e fazendo planos para o futuro.  Para Bate-Seba, entretanto, a primavera passou a ter um sabor amargo. Foi em uma primavera que sua vida mudou completamente. Para ela, aquela estação tornou-se um memorial de manipulação, sofrimento, tragédia e dor. Foi na primavera, no início de um novo ano, diz o texto sagrado, na época em que os Reis saíam para guerrear, que Davi avistou Batseba do seu telhado (2 Sm 11.1-2). A partir daquele dia sua vida nunca mais seria a mesma.

O Rei de Israel está onde não devia! E eu não me refiro ao passeio no telhado de sua casa mas à sua presença na cidade. A sentença adversativa no fim do primeiro verso claramente expressa que Davi, ao contrário do que se esperava de todos os outros reis, estava ocioso, aproveitando o clima pacífico de Jerusalém, enquanto seu valentes generais e corajosos soldados estavam derramando seu sangue e arriscando suas vidas pelo reino. Enquanto Davi relaxava e chochilava tranquilamente em suas dependências reais, seus exércitos dormiam em tendas improvisadas no campo de batalha sem qualquer tipo de conforto (2 Sm 11.9). Ao cair da tarde, Davi retirou-se de seus aposentos e foi para o terraço de sua casa, talvez para aproveitar a brisa fria das regiões desérticas da Palestina. Essa construção era provavelmente a mais alta da cidade, proporcionando ao Rei uma visão clara e privilegiada do seu reino. É desse local que Davi avista uma formosa mulher. Ele não sabe quem ela é. Um de seus servos a identifica como: “a filha de Eliã e a mulher de Urias” (2 Sm 11.3). Mas para Davi pouco importa se ela é filha de alguém, pouco importa se ela é a esposa de alguém. Tamanho é seu desejo por ela que ele ignora completamente tanto a lei moral, que claramente proíbe adultério, quanto a lei civil de Israel, que condena à morte por apedrejamento os adúlteros, mesmo que seja o próprio rei. Davi envia-lhe mensageiros e a toma para si (2 Sm 11.4a)

Para Davi, pouco importa se ela é filha de alguém, pouco importa se ela é a esposa de alguém. Tamanho é seu desejo por ela que ele ignora completamente tanto a lei moral, que claramente proíbe adultério, quanto a lei civil de Israel, que condena à morte por apedrejamento os adúlteros.

“Ah, mas a culpa é de Bate-Seba,” alguém pode pensar. “Quem mandou ele tomar banho no seu telhado onde qualquer pessoa podia vê-la?”. Mas onde lemos que Bate-Seba estava no telhado de sua casa? Rapidamente percebemos que precisamos nos ater ao texto para responder essa e outras perguntas que são comumente feitas a respeito de Bate-Seba. Uma rápida pesquisa sobre banhos durante esse período na região da Palestina nos revela que enquanto é possível que Bateseba estivesse banhando-se em seu telhado, também é possível (e até muito mais provável) que ela estive no quintal de sua casa, protegida por quatro paredes, dando-lhe a necessária sensação de privacidade. É também possível que ela estivesse tomando banho em uma das fontes públicas de Jerusalém, o que implica que ela estaria usando algum tipo de roupa de banho. O fato é que o escritor, inspirado pelo Santo Espírito, não nos revela essas informações. As possibilidades são diversas e precisamos nos ater aquilo que está escrito. O texto simplesmente nos informa que Davi à viu enquanto ele estava em seu próprio telhado. Especulações de qualquer natureza nos fazem fugir do foco do texto e terminam levando à interpretações que não foram pretendidas pelo autor original.

Mas talvez alguém ainda possa pensar: “Bate-Seba fez isso de propósito! Ela expôs sua nudez para provocar o pobre Davi!”. Entretanto, onde nos são reveladas as intenções de Bate-Seba? O texto também não nos revela nada sobre o caráter ou personalidade de Bate-Seba ao ponto de podermos afirmar que sua exposição foi proposital. Na verdade, é muito provável que Bate-Seba contasse com a ausência de Davi de suas dependências reais. Não é essa a expectativa do próprio autor? Não é o próprio narrador quem esperava que Davi estivesse no campo de batalha juntamente com os outros reis?  Como cidadã de Israel, e sendo seu marido um dos valentes soldados da nação, Bate-Seba possivelmente também esperava que o comandante-supremo das forças armadas de Israel estivesse lutando juntamente com seus exércitos. E o que exatamente viu Davi? Será que ele viu Bate-Seba totalmente despida? Ou será que ele viu apenas o rosto da bela Israelita enquanto ela banhava-se por trás de algum tipo de cortina? Simplesmente não sabemos. O texto diz, literalmente, que Bate-Seba “era boa de se ver”. Apenas uma expressão idiomática corretamente traduzida do Hebraico pela ARA como “era ela mui formosa”.

Uma última opinião contra Bate-Seba vem daqueles que acham que ela estava em posição de dizer “não” para Davi. “Ela deveria ter resistido,” dizem eles. “Afinal de contas, ela era casada!”. O curioso é que esses não fazem a mesma exigência de Sara, em Gênesis 20, que em uma situação muito semelhante permite que Abimeleque, rei de Gerar, mande buscá-la para seu harém pensando ser ela irmã de Abraão (Gn 20.2).  Aqueles que atribuem alguma parcela de culpa a Bate-Seba por não ter dito “não” a Davi devem ser consistentes e também considerar Sara culpada por não ter resistido a Abilimeque e por não ter-lhe dito toda a verdade. Por outro lado, a despeito da inconsistência, a pergunta permanece. Será que Bate-Seba não poderia ter resisido? Será que ela não poderia ter dito não? Precisamos considerar essas perguntas do ponto de vista de Bate-Seba. O rei de Israel, a autoridade máxima do reino, manda buscá-la. Será que ela deveria dizer “não”? Não bastasse Davi ser rei, era ele temente ao Senhor, representante de Javé no meio do seu povo, homem segundo o coração de Deus. Por que ela haveria de temer ir ao palácio real? Talvez Davi tivesse notícias de seu marido. Talvez Urias tive sido terrivelmente ferido, ou até morto em batalha, e agora o rei queria avisá-la pessoalmente. E ao chegar no palácio, após descobrir as intenções de Davi, será que ela não poderia ter dito “não”?  Certamente que sim. Mas uma outra pergunta também pode ser feita nesse mesmo contexto. Será que ela de fato não disse “não”? Será que ela não lembrou a Davi seu estado civil e a lei de Israel? Talvez sim e, por consequência, a acusação de que Bate-Seba foi conivente cai por terra. Entretanto, nada disso nos foi revelado. O que nos lembra mais uma vez que precisamos nos ater ao texto.

Quando nos prendemos a narrativa, é fácil perceber que seu foco é Davi e suas ações enquanto governante. Bate-Seba é retratada como agente ativo somente em quatro momentos: na sua ida ao palácio e ao voltar para sua casa (v.4), ao enviar a notícia de sua gravidez (v.5), e ao lamentar a morte do seu marido (v.26). É Davi que a vê, é ele quem pergunta a seu respeito, é ele quem a chama para si, é ele quem deita-se com ela. Perceba que Bate-Seba é quem sofre todas as ações de Davi. Gramaticalmente, Bate-Seba é somente um objeto. E a verdade gramatical não está longe de ser diferente da factual. Davi não tem a menor pretensão de ter um relacionamento duradouro com Bate-Seba e seu comportamento é marcado por abuso de poder e manipulação. É ele quem envia os mensageiros reais à casa de Bate-Seba. Por sua autoridade, ele retira Urias do campo de batalha (v.7) e o incita a ter relações com ela (v.8) para que o filho bastardo que crescia no seu ventre se tornasse o filho legítimo e prematuro do soldado. A narrativa deixa claro que para Davi, Bate-Seba não passou de uma mera diversão. Ele havia friamente utilizado de sua posição, de sua autoridade real, para conseguir o que queria. Bate-Seba foi uma triste vítima de abuso de poder, que depois de ter sido assediada sexualmente, foi descartada como um objeto qualquer, como aquele brinquedo com o qual uma criança já cansou de se entreter.

Perceba que Bate-Seba é quem sofre todas as ações de Davi. Gramaticalmente, Bate-Seba é somente um objeto. E a verdade gramatical não está longe de ser diferente da factual.

O caso de Bate-Seba nos lembra que não é de hoje que mulheres sofrem abusos e seu exemplo de maneira alguma exaure as diversas formas que abusos podem se manifestar contra mulheres. Abuso pode ser verbal, quando mulheres são atacadas e denegridas por gritos ou expressões ofensivas e desrespeitosas. Abuso também pode ser físico, quando a integridade corporal feminina é ameaçada por atos de violência. Abuso também  pode sexual, quando mulheres são submetidas, seja por coação física ou psicológica, a práticas sexuais não desejadas. O assédio que Bate-Seba sofreu também nos lembra da existência desse mesmo pecado em nosso dias. No situação dela, pelo menos dois elementos de assédio estão presentes: uma clara relação de autoridade (rei-súdito) e a óbvia insinuação do superior para o inferior. Talvez você, lendo esse post, tenha sido vítima de abuso e/ou assédio. Talvez hoje mesmo você tenha experimentado algo dessa natureza no seu trabalho, na rua, ou em sua própria casa. A sua situação não foi esquecida pela Bíblia. Existe alguém nas Escrituras com quem você pode se identificar.

Bate-Seba também nos lembra que abuso e assédio também podem, e de fato acontecem, no meio do povo de Deus, no seio da Igreja. Assim como Davi, falsos pastores e líderes, lobos travestidos em pele de cordeiro, utilizam de sua posição e influência para tirar proveito da fragilidade das mulheres que estão em seu meio. As vítimas frequentemente são aquelas que buscam instrução e conselho. Mulheres com casamentos destruídos, com experiências passadas de abuso e assédio, e que terminam por ter experiências semelhantes ou ainda mais terríveis nas mãos daqueles que deveriam cuidar e preservar sua alma e bem-estar. Patrick Edouard é um exemplo muito recente dessa triste realidade. Ex-pastor de uma igreja reformada em Iowa, Estados Unidos, Edouard foi condenado no dia 24 de agosto deste ano por quatro acusações de exploração sexual cometidas entre 2003 e 2010. Os testemunhos das vítimas são marcantes. Uma delas afirma que, identificando Edouard como seu pastor, procurou nele alguém para instruí-las, mas ao invés disso foi apanhada na teia de um sombrio e perverso predador que se aproveitou de sua posição para entrar em sua vida. Uma outra confessa: “Ele não tinha a menor pretensão de se apaixonar por mim. Ele explorou minhas forças e fraquezas”. Veja a matéria completa aqui. Eu não tenho nenhum exemplo de um “Edouard” brasileiro, mas não tenho dúvidas de que eles existem e de que você lendo esse post talvez tenha sido uma de suas vítimas ou talvez conheça alguém que foi.

Louvado seja o nosso Deus por sua misericórdia e bondade. Porque não importa quão difícil e dolorosa seja nossa situação, como um pai amoroso, ele nos conforta e nos orienta por meio de sua Palavra (Sl 119.103-105).  Se você, como Bate-Seba, foi vítima de algum tipo de abuso ou assédio, lembre-se que mais do que ter alguém com quem se identificar nas Escrituras, existe alguém que se identifica com você. O nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, em sua encarnação tomou para si um corpo semelhante ao seu, de carne e osso, ele sabe em todos os aspectos o que é sofrer (Hb 2.16-17). Por acaso, você se esquece de que, em sua tentação Cristo foi sofreu o mais terrível dos assédios (Mt 4.1-11) ou que em sua paixão, ele sofreu os mais violentos dos abusos (Mt 26.57-68, 27.11-31)? E no entanto ele sofreu tudo isso para poder se identificar com as dores e sofrimentos do seu povo, para que ele pudesse verdadeiramente ser o único e perfeito Mediador entre Deus e seu povo, intercedendo eternamente por ele em sua própria natureza humana (Catecismo Maior, P.39). Se Cristo é verdadeiramente seu Mediador, venha à ele. Se ele não é seu único Mediador, abrace-o como tal! Derrame seu corpo e coração partidos diante dEle e encontre o conforto e a consolação que sua alma tanto busca. A final de contas, não somente Cristo simpatiza com suas dores, como seu Espírito é o Consolador (Jo 14.26), e é somente unidos a ele que experimentamos a paz de Deus que excede todo o entendimento (Fp 4.7).

Há algo mais que Bate-Seba lhe ensina se você foi vítima de abuso ou assédio: por mais dolorosa e humilhante que essa experiência tenha sido, sua vida não acabou! Ainda existe grandes propósitos para sua existência. O adultério de Davi foi apenas o princípio das dores de Bate-Seba. Logo em seguida ela experimentou a frustração e o desespero de uma gravidez indesejada, o falecimento de seu marido, e a morte inesperada do seu filho (2 Sm 11.5, 26; 12.15-18). Mas, em meio a tanta tragédia, ainda havia um grande propósito para a vida daquela sofrida mulher. Foi no seu ventre que foi gerado o homem mais sábio do mundo, o maior rei de Israel depois do próprio Davi, uma criança a quem o Deus da aliança amou de uma maneira toda especial (2Sm 12.24; 1Rs 10.23). Foi por causa de Salomão, que tipicava o Cristo que haveria de vir, que Bate-Seba foi incluída na genealogia do bendito Redentor (Mt 1.6). Da mesma maneira, você que lê esse post, apesar das humilhações e sofrimentos, os propósitos de Deus para sua vida se mantêm. Eles continuam sendo o de glorificar a Deus e gozá-lo para sempre (Catecismo Maior, P.1). O propósito de cultuar a Deus no seu santo dia, de unir-se ao homem certo e ser uma só carne com ele, de crescer e multiplicar, de educar seus filhos no temor do Senhor, de viver dia-a-dia enfrentando as dificuldades da vida Cristã, de aguardar ansiosamente o retorno de Cristo e a restauração de todas as coisas – todos esses propósitos e muitos outros continuam existindo e são a vontade de Deus para você, a qual ele revela em sua Palavra. Continue vivendo, busque esses propósitos, experimente-os em sua vida!

Há algo mais que Bate-Seba lhe ensina se você foi vítima de abuso ou assédio: por mais dolorosa e humilhante que essa experiência tenha sido, sua vida não acabou! Ainda existem grandes propósitos para sua existência.

Uma última palavra a você que sofre com abuso e assédio: procure trazer tudo à luz da verdade. Após a morte de Urias, Davi toma Bate-Seba para si. Parece que tudo finalmente vai bem. Davi se tornaria um herói porque além de se casar com a viúva de um de seus fiéis guerreiros ele ainda assumiria a paternidade de um filho que, para quem não conhecia seu pecado, não era seu. Mas Deus odeia o pecado, a mentira, a falsidade. Através do profeta Natã toda a verdade é revelada (2 Sm 12.1-15). É somente depois desse confronto que essa narrativa é concluída. Tornar público algo dessa natureza certamente é difícil, humilhante, intimidador e até mesmo ameaçador. Mas, é certamente necessário! Seja encorajada pelo deveres do sexto mandamento, que lhe cativam a preservação da sua vida e da vida de outros (Catecismo Maior, P.135). Já parou para pensar que por causa do seu silêncio outras mulheres podem estar sendo vítimas do mesmo problema? Seja novamente encorajada pelos deveres do nono mandamento, o qual requer de você a preservação e promoção da verdade, particularmente em situações de justiça e juízo (Catecismo Maior, P. 144). Talvez você não saiba exatamente o que fazer nem por onde começar. Siga as instruções do Senhor Jesus Cristo em Mateus 18.15-20 se a parte culpada for um irmão em Cristo. Entregue-o as autoridades civis se for alguém de fora da Igreja (Rm 13.1-7). Por mais difícil que seja, considere seriamente trazer toda essa situação à luz.

Abuso e assédio são pecados terríveis que atacam a dignidade e a integridade das mulheres. Foi assim com Bate-Seba, e certamente é assim hoje também. Mas louvado seja o Deus da Aliança que em sua Palavra revela conforto, consolo, e restauração em meio a essa triste situação. A história de Bate-Seba, e de fato as Escrituras como um todo, nos lembram que não existe estrago causado pelo poder destrutivo do pecado que não possa ser perdoado e revertido pelo amor, poder, e misericórdia do Pai, que se revelou em Seu Filho e que selou você, mulher da aliança, com o Seu Santo Espírito. É sustentada no Deus Triuno, alicerçada em Suas promessas, e através da sua ação divina, que você pode encontrar esperança por mais difíceis que sejam as circunstâncias. Que o Senhor a abençoe ricamente!

Não existe estrago causado pelo poder destrutivo do pecado que não possa ser perdoado e revertido pelo amor, poder, e misericórdia do Pai, que se revelou em Seu Filho e que selou você, mulher da aliança, com o Seu Santo Espírito.

POR BRENO MACEDO   Fonte: Reforma21

Esse artigo foi republicado com a permissão de Pastor Anselmo Melo