Será que nos atreveríamos a pensar na morte como uma vocação? O autor de Eclesiastes fez esta declaração:
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há o tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer.” (Ec. 3.1, 2a)
Da mesma forma, o escritor de Hebreus diz:
“E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois, o juízo.” (Hb 9.27)
A Escritura fala da morte em termos de um “propósito debaixo do céu” e de “ordenamento”. A morte é um ordenamento divino. É parte do propósito de Deus em nossas vidas. Deus chama pessoas para morrer. Ele é soberano sobre tudo da vida, incluindo a experiência final de vida.
Estou ciente de que há professores nos dizendo que Deus não tem nada a ver com a morte. A morte é vista estritamente como um dispositivo demoníaco do Diabo. Toda dor, doença, sofrimento e tragédia são atribuídos ao Maligno. Deus é absolvido de qualquer responsabilidade. Essa visão é formulada para se certificar de que Deus seja absolvido da culpa por qualquer coisa que dê errado neste mundo. “Deus sempre deseja curar”, nos é dito. Se essa cura não acontece, então a culpa recai sobre Satanás – ou a nós mesmos. A morte, eles dizem, não é o plano de Deus. Ela representa a vitória de Satanás sobre o Reino de Deus.
Tais visões podem trazer alívio temporário para o aflito. Mas elas não são verdadeiras. Elas não têm nada a ver com o cristianismo bíblico. Em um esforço para absolver Deus de qualquer culpa, eles fazem isso à custa da soberania de Deus.
Sim, existe um Diabo. Ele é o nosso arqui-inimigo. Ele fará qualquer coisa ao seu alcance para trazer miséria para as nossas vidas. Mas Satanás não é soberano. Satanás não guarda as chaves da morte.
Quando Jesus apareceu em uma visão a João na ilha de Patmos, ele se identificou com estas palavras:
“Não temas; eu sou o primeiro e o último e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno.” (Ap. 1.17, 18)
Jesus segura as chaves da morte. Satanás não pode apanhar essas chaves de suas mãos. O pulso de Cristo é firme. Ele segura as chaves, porque são propriedades dele. Toda a autoridade no céu e na terra foi dada a ele. Essa autoridade inclui toda a autoridade sobre a vida e toda a autoridade sobre a morte. O anjo da morte está à disposição e chamado dele.
Acima de todo sofrimento e da morte está o Senhor crucificado e ressurreto. Ele derrotou o último inimigo da vida. Ele venceu o poder da morte. Ele nos chama para morrer, mas esse chamado é um chamado à obediência para a transição final da vida. Por causa de Cristo, a morte não é o final. É uma passagem de um mundo para o outro.
Eu nunca esquecerei as últimas palavras que o meu pai disse para mim. Estávamos sentados juntos no sofá da sala. O seu corpo havia sido arruinado por três derrames. Um lado do seu rosto estava distorcido pela paralisia. Seu olho e lábio do lado esquerdo pendiam de maneira incontrolável. Ele falou comigo com uma pronúncia pesada. Suas palavras eram difíceis de entender, mas o seu significado estava muito claro. Ele proferiu estas palavras: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé”.
Essas foram as últimas palavras que ele me falou. Horas mais tarde, ele sofreu a sua última hemorragia cerebral. Encontrei-o caído no chão, um fio de sangue escorrendo no canto da sua boca. Ele estava em coma. Misericordiosamente, ele morreu um dia e meio depois, sem recuperar a consciência.
Enquanto as suas últimas palavras para mim foram heroicas, minhas últimas palavras para ele foram covardes. Eu protestei suas palavras premonitórias. Eu disse de forma rude: “Não diga isso, pai”.
Há várias coisas que eu disse em minha vida que desejo desesperadamente que não tivesse dito. Nenhuma das minhas palavras é mais vergonhosa para mim do que essa. Mas as palavras não podem ser trazidas de volta, assim como uma flecha acelerando após a corda do arco ter vibrado em lançamento pleno.
Minhas palavras foram repreensão a ele. Eu me recusei a lhe permitir a dignidade de um último testemunho para mim. Ele sabia que estava morrendo. Eu me recusei a aceitar o que ele já havia aceitado graciosamente.
Eu tinha 17 anos. Não sabia nada sobre a morte. Não foi um ano muito bom. Eu vi meu pai morrer um pouco de cada vez durante um período de três anos. Eu nunca o vi reclamar. Nunca o ouvi protestar. Ele sentava na mesma cadeira dia após dia, semana após semana, ano após ano. Ele lia a Bíblia com uma lupa enorme. Eu estava cego para as ansiedades que deve tê-lo atormentado. Ele não podia trabalhar. Não havia renda nenhuma. Nenhum seguro por invalidez. Ele sentava lá, esperando morrer, observando as suas economias da vida esvaírem-se juntamente com a sua própria vida.
Eu estava zangado com Deus. Meu pai não estava zangado com ninguém. Ele viveu os seus últimos dias fiel à sua vocação. Ele combateu o bom combate. Um bom combate é um combate travado sem hostilidade, sem amargura, sem autopiedade. Eu nunca havia estado em um combate assim.
Quando meu pai morreu, eu não era cristão. A fé era algo além da minha experiência e além da minha compreensão. Quando ele disse, “guardei a fé”, não me dei conta do peso de suas palavras. Eu me fechei para elas. Eu não tinha ideia de que ele estava citando a última mensagem do apóstolo Paulo para o seu discípulo amado, Timóteo. O seu testemunho eloquente foi desperdiçado comigo naquele momento. Mas não agora. Agora eu compreendo. Agora eu quero perseverar como ele perseverou. Quero completar a carreira e terminar o percurso como ele fez antes de mim. Não tenho nenhum desejo de sofrer como ele sofreu. Mas quero guardar a fé como ele guardou.
Se meu pai ensinou alguma coisa, foi a como morrer. Meu pai completou a carreira porque Deus o chamou a completa-la. Ele terminou o percurso porque Deus estava com ele ao passar por cada obstáculo. Ele guardou a fé porque a fé o guardou.
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Autor: R. C. Sproul
Divulgação: Bereianos
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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos.