Introdução
Há exatamente uma semana publiquei um pequeno artigo a respeito da atual prática de dispensar aos animais de estimação o mesmo tipo de tratamento e afeto destinados aos nossos filhos.[i] Homens e mulheres que se denominam “pais e mães de pets” e que, com base nisso, praticam as coisas mais absurdas, desde aniversário do bichinho de estimação até a concessão do sobrenome da família ao animal.
Meu argumento contra essa prática se baseou nas doutrinas da Trindade e da criação. O relacionamento entre as pessoas do Pai e do Filho, bem como a igualdade de essência define quem o homem deve considerar como seus filhos. De igual modo, o fato de o homem ser criado à imagem de Deus, conforme a sua semelhança, faz com que exista um abismo ontológico entre o ser humano e os animais. À parte da classificação biológica dos reinos vegetal, mineral e animal, a Escritura não classifica o homem como “animal”, mas como “alma vivente”, um ser que porta a imagem de Deus. Assim, é completamente inapropriado que animais de estimação sejam chamados e tratados como filhos. Inclusive, é bom que se diga que a Bíblia faz distinção entre o ser humano e os animais: “Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gênesis 6.7; conferir 7.23 e Jeremias 51.62).
Contudo, não tardou para que defensores da prática e relativistas bíblicos começassem a tergiversar na busca por alguma brecha que justificasse o seu modo de agir. Um argumento apresentado se baseia numa passagem das Escrituras, e é tal argumento que me impele a escrever este breve artigo. É necessário afirmar que a tentativa de encontrar na Escritura uma abertura para a prática poderia me levar a elogiar o intento, uma vez que tais pessoas estariam desejando agir com base na Escritura. Não obstante, o contrário é que é verdade. Elas continuam desejando seguir as inclinações dos seus corações. Estão apenas usando a Bíblia como pretexto.
Sem mais delongas, vamos à passagem.
2 Samuel 12.4
A passagem diz o seguinte: “O SENHOR enviou Natã a Davi. Chegando Natã a Davi, disse-lhe: Havia na cidade dois homens, um rico e outro pobre. Tinha o rico ovelhas e gado em grande número; mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha como filha. Vindo um viajante ao homem rico, não quis este tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante que viera a ele; mas tomou a cordeirinha do homem pobre e a preparou para o homem que lhe havia chegado”.
O argumento utilizado é que esta passagem bíblica ensina que animais de estimação podem ser tratados e considerados como filhos, afinal de contas, o homem pobre da passagem havia comprado uma cordeirinha e a tratava como filha. Ela vivia com os seus filhos, denotando igualdade. Ela comia do seu prato e bebia do seu copo. Ela dormia nos braços do homem e era tratada como filha. O argumento pode ser esboçado em forma de um silogismo:
PREMISSA MAIOR: Se a Bíblia contivesse ao menos um exemplo de um animal sendo tratado como filho, seria lícito fazer o mesmo com os nossos animais.
PREMISSA MENOR: A Bíblia apresenta o exemplo de um homem que tinha uma cordeirinha e a tratava como filha.
CONCLUSÃO: Logo, animais de estimação podem ser tratados como filhos.
Trata-se de um argumento lógico bem construído. Não obstante, é um argumento falacioso, pois se fundamenta numa péssima hermenêutica. O argumento desconsidera, por completo contexto histórico, bem como o gênero literário da passagem em questão. Assim, é preciso interpretar devidamente a passagem, a fim de ficar evidenciado que a mesma não tem como propósito fornecer o fundamento para a atual prática dos “pais e mães de pets”.
A primeira verdade que precisa ser afirmada a respeito da passagem de 2Samuel 12.1–4, é que ela é uma parábola.[ii] Esta informação é crucial para entendermos a passagem.
Uma parábola nada mais é do que “uma narrativa breve que exige uma reação do ouvinte. No que diz respeito ao gênero, as parábolas são histórias realistas que abordam situações cotidianas”.[iii] Herbert Lockyer, um erudito estudioso das parábolas da Bíblia afirma que existem duas ideias presentes na raiz do termo grego παραβολή: “‘representar ou significar algo’; ‘semelhança ou aparência’. Esse termo grego significa ‘ao lado de’ ou ‘lançar ou atirar’, transmitindo a ideia de proximidade, num cotejamento que visa a verificar o grau de semelhança ou de diferença. Uma ‘semelhança’ ou ‘pôr uma coisa ao lado da outra’”.[iv] Assim, ao contar a parábola, Natã fará uma comparação entre a história e a realidade.
É preciso compreender que, apesar de ser uma história realista, uma parábola não é uma história real. Apesar de fazer uso de elementos do cotidiano das pessoas, as parábolas não eram histórias reais. O Dr. Paulo Anglada afirma o seguinte sobre as parábolas: “Elas são histórias empregando elementos do cotidiano. Não são fatos reais, mas histórias imaginárias concebidas a partir de aspectos da vida comum, familiares aos ouvintes e relacionados ao trabalho, religião e vida social e doméstica”.[v] Dessa maneira, como coloca, Köstenberger e Patterson: “Provavelmente nunca houve, por exemplo, nenhum estalajadeiro ou ‘bom samaritano’ históricos”.[vi]
Se as parábolas não apresentam fatos, então, qual o seu propósito? Qual o seu objetivo? Em primeiro lugar, as parábolas possuem um propósito didático. Elas são concebidas para ensinar determinada lição espiritual ou moral a um grupo de pessoas. Caso a lição fosse apresentada de maneira proposicional, em forma de proposições teológicas ou morais, dificilmente conseguiria captar a atenção do seu público. Lockyer diz: “Se Natã tivesse entrado no palácio real e, de forma direta e imediata, censurasse a culpa do rei decretando a sentença devida ao seu pecado, é pouco provável que Davi desse ouvidos. O tratamento direto e franco da questão talvez fizesse o rei se irar e o impedisse de se arrepender”.[vii] Assim, as parábolas se prestam a esse propósito. Os ouvintes rapidamente se identificavam com o conteúdo da história e permaneciam atentos até o fim. O erudito Moisés Silva diz que, além disso, “as parábolas têm a vantagem de desarmar aqueles que possam ofender-se com sua mensagem, visto que o ouvinte frequentemente tem que esperar até o último momento da história para descobrir seu significado”.[viii]
Qual a importância disso para o assunto dos “pais e mães de pets”? Simples. A passagem não está narrando um fato. Ela não está contando a história real de um homem que colocou em prática aquilo que a sociedade e até mesmo muitos crentes dos nossos dias têm praticado. As pessoas não conseguem perceber que estão fazendo uso de uma parábola, uma história apenas e extraindo dela um princípio para fundamentar um comportamento que é diametralmente oposto a doutrinas claras da Escritura, como as doutrinas da Trindade e da criação do ser humano à imagem de Deus. Numa ânsia por continuarem alimentando práticas antibíblicas, elas acabam por trocar aquilo que é certo por algo errado, e tudo isso firmadas numa péssima interpretação textual.
Mas há outro problema em se utilizar a passagem de 2Samuel 12.1–4 para apadrinhar o comportamento dos “pais e mães de pets”.
Ao se interpretar uma parábola é necessário ter o devido cuidado para não se extrair dela mais do que aquilo que, verdadeiramente, é o seu propósito. Anglada nos ajuda com este aspecto da interpretação das parábolas (a citação é longa, mas também é bastante elucidativa):
3. Identifique o foco ou focos centrais da parábola. A diferença principal entre parábolas e alegorias consiste em que as primeiras se propõem a ilustrar apenas uma ou algumas verdades ou lições centrais, enquanto que nas alegorias, cada detalhe é concebido com o propósito de significar alguma coisa, ensino ou pessoa, como ocorre por exemplo em O Peregrino, de João Bunyan. De modo geral, Jesus ilustra apenas uma lição com as suas parábolas (ver Lc 15.7; 18.7; 20.16). Algumas parábolas, entretanto, tais como a parábola do semeador (Mt 13.18–23) e a do joio (em Mt 13.36–43), são tão adequadas para ilustrar as lições que Cristo queria ensinar, que vários detalhes ilustram aspectos dessas verdades. Em geral, entretanto, o intérprete deve ter cuidado para não alegorizar os detalhes de uma parábola, encontrando significados em detalhes da história que não se propõem a ensinar nenhuma verdade em particular. Zuck chama a atenção para o fato de que geralmente Jesus não atribui significado aos detalhes das suas parábolas. Como exemplo, ele cita a parábola da ovelha perdida (Lv 15.3–7). Apesar de obviamente apontar para Jesus (o pastor), para pecadores perdidos (a ovelha perdida) e para os crentes (as 99 ovelhas), nada indica que detalhes, tais como o deserto, o ombro do pastor, sua casa, seus amigos e vizinhos, tenham qualquer significado.
4. Observe indicações explícitas e implícitas do propósito da parábola. Às vezes, a própria parábola indica explicitamente o seu propósito — geralmente no início ou no final — como ocorre na parábola do juiz iníquo (Lc 18.1–8). Logo no primeiro versículo, é dito que o propósito da parábola é demonstrar “o dever de orar sempre e nunca esmorecer” (cf. também o propósito da parábola das bodas, em Mateus 22.14). Quando não há indicação explícita do significado ou propósito da parábola, o intérprete deve observar o seu contexto-histórico literário. Frequentemente, a circunstância em que a parábola é proferida, uma pergunta, comentário ou explicação, logo antes ou depois da parábola, ajudam o leitor a compreender o seu propósito ou significado.[ix]
Por exemplo, na parábola do credor incompassivo muitas pessoas acabam afirmando que ela ensina que é possível perder a salvação depois de a termos recebido, pois a parábola fala do rei concedendo perdão ao homem que lhe devia dez mil talentos, porém, anulando esse perdão posteriormente. O que as pessoas deixam de considerar é que o propósito da parábola não é ensinar isso. A parábola tem o objetivo de nos ensinar a respeito de perdoarmos nossos irmãos ilimitadamente, uma vez que nossa dívida em relação a Deus é infinitamente maior do que a dívida que qualquer pessoa tenha conosco (Mateus 18.23–35). Muitas pessoas erram na interpretação das parábolas porque as desassociam do seu contexto histórico, e isso jamais deve ser feito. No caso da parábola do credor incompassivo, o contexto histórico pode ser aferido nos versículos 21–22: “Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.
De igual modo, dizer que 2Samuel 12.1–4 fornece o fundamento para tratarmos nossos animais de estimação como filhos é violentar o propósito da parábola. Devemos perguntar: Qual o propósito de Natã ao contar essa parábola ao rei Davi? Por acaso, Natã desejava ensinar Davi a dormir com seus animais de estimação, deixar que eles comessem do seu prato e bebessem do seu copo, além de fazê-los irmãos dos seus verdadeiros filhos? É absurda e desonesta qualquer sugestão nesse sentido. O contexto histórico da parábola da cordeirinha é claro: os pecados cometidos por Davi, seu adultério com Bate-Seba e o assassinato de Urias (2Samuel 11). O capítulo 11 termina com a afirmação de que, “isto que Davi fizera foi mal aos olhos do SENHOR” (v. 27).
A parábola, então, foi contada por Natã para levar Davi a reconhecer a sua culpa diante de Deus. Ao contar a história do homem e sua cordeirinha, o único objetivo de Natã era extrair a confissão: “Pequei!”, de Davi. Natã não tinha a menor ideia de que, um dia a história que contou seria usada para defender uma tolice. Novamente citando Moisés Silva: “O ponto aqui é que as parábolas devem ser entendidas historicamente, isto é, identificando-se as situações específicas em que elas foram usadas”.[x]
Sinceramente, causa-me espécie o caráter pueril de se usar a passagem de 2Samuel 12.1–4 para defender tamanha insensatez. Insisto em dizer que as pessoas desconsideram o que passagens e doutrinas claramente ensinadas nas Escrituras ensinam, a fim de agarrarem a deturpações de passagens que nada têm a ver com aquilo que corações pecaminosos concebem. Paulo Anglada dá o alerta: “Finalmente, é importante verificar se outras passagens bíblicas ensinam a verdade que o intérprete pensa que a parábola ilustra. Como regra, parábolas não devem ser usadas como base doutrinária, mas como ilustrações de verdades ensinadas em outras passagens bíblicas”.[xi]
Consideração Final
Depois de todo o arrazoado acima, só resta dizer uma coisa em relação a quem procura usar a parábola da cordeirinha para ensinar que animais de estimação podem ser tratados como filhos. Como afirmou o reformador João Calvino: “É lícito concluir que a imaginação do homem é, por assim dizer, uma perpétua fábrica de ídolos”.[xii]
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Notas:
[i] O artigo pode ser lido aqui e aqui.
[ii] Herbert Lockyer. Todas as Parábolas da Bíblia. São Paulo: Vida, 2006. p. 39.
[iii] Andreas J. Köstenberger e Richard D. Patterson. Convite à Interpretação Bíblica: A Tríade Hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2015. p. 396.
[iv] Herbert Lockyer. Todas as Parábolas da Bíblia. p. 9.
[v] Paulo Anglada. Introdução à Hermenêutica Reformada: Correntes Históricas, Pressuposições, Princípios e Métodos Linguísticos. Ananindeua, PA: Knox Publicações, 2006. p. 210.
[vi] Andreas J. Köstenberger e Richard D. Patterson. Convite à Interpretação Bíblica. p. 396.
[vii] Herbert Lockyer. Todas as Parábolas da Bíblia. p. 40.
[viii] Walter C. Kaiser Jr., e Moisés Silva. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. p. 104.
[ix] Paulo Anglada. Introdução à Hermenêutica Reformada. pp. 212–213.
[x] Walter C. Kaiser Jr., e Moisés Silva. Introdução à Hermenêutica Bíblica. p. 106.
[xi] Paulo Anglada. Introdução à Hermenêutica Reformada. p. 213.
[xii] João Calvino. As Institutas da Religião Cristã. 1.11.8. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 107.
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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos.