“…foi
crucificado, morto, sepultado, desceu ao mundo dos mortos”.
A crucificação é um
episódio doloroso e que muitos conhecem por sua brutalidade. O filme “Paixão de
Cristo”, dirigido por Mel Gibson foi uma das encenações do martírio de Jesus
que mais se aproximou do espetáculo horrendo que aconteceu há dois milênios
atrás. Mas o que passa despercebido para alguns é que as dores físicas e o
horripilante rito de matar um homem pendurando-o num madeiro não foram o pior
que aconteceu ao Cristo. Seu padecimento extrapola o que é visível para a
plateia que vê o Filho de Deus apregoado na cruz. O que nosso Senhor sentiu foi
o peso de carregar sobre si os pecados de muitos e com isso, sentiu a ira e o
abandono de Deus Pai, pois ali, de maneira substitutiva, aquele que não tinha
pecado representava (de modo vicário) a soma da vileza dos piores pecadores
possíveis. E ele sentiu a agonia infernal de ser punido para satisfazer a justa
ira divina.
Logo, devemos compreender
que a crucificação não evidencia apenas o altruísmo de um homem que deu a vida
para deixar de herança um belo exemplo às gerações posteriores. A cruz pode ser
vista como um episódio de amor e misericórdia, porém, mais que isso ela foi o
desfecho de uma dívida que era preciso ser paga. O credor não podia
simplesmente perdoar, alguém deveria derramar seu sangue para que a justiça
fosse feita. Citando John Stott, é correto dizer que “Na Cruz, a misericórdia e a justiça divina foram igualmente expressas e
eternamente reconciliadas”.
Para uma melhor
compreensão do que disse Stott, é preciso recorrer a um texto paulino.
O
SUBSTITUTO
Paulo vai iniciar a sua
exposição doutrinária aos Romanos afirmando que as pessoas sem Lei são culpadas
diante de Deus (Rm 1.18-2.16). Em seguida, o apóstolo afirma que os possuidores
da Lei também são culpados (Rm 2.17-3.8). Enfim, o mundo inteiro é culpado
diante de Deus (Rm 3. 9-20). A culpa é proveniente do pecado: “todos pecaram e estão destituídos da glória
de Deus” (Rm 3.23).
Ao falar sobre a natureza
culpada do ser humano, que o torna réu no Tribunal de Deus, Paulo está
introduzindo a boa nova. O Evangelho, para ser bem compreendido, precisa partir
desse ponto. O que se segue na explanação paulina é que Deus não nos retribuirá
segundo os nossos pecados, pois em Cristo, através da morte na cruz, nós fomos
justificados, isto quer dizer que nossos pecados não mais serão levados em
conta, foi Cristo quem pagou por eles com seu sangue. Eis a boa notícia que
leva o nome de Evangelho. Então, não é preciso fazer nada na tentativa de
aplacarmos a ira de Deus. Jesus já fez tudo por nós, sua obra é completa e já
foi consumada. Basta crer somente nele.
A fé nos justifica e não
nossas obras, pois somos incapazes de guardar a Lei de Deus. Jesus foi aquele
que não pecou e se deu por sacrifício em nosso favor. Nossos pecados foram
remidos pelo sangue de Cristo. Judeus e gentios, ambos declarados justos graças
aos méritos do Salvador. O que Paulo ensina aqui é o cerne da doutrina cristã,
e em ambos os testamentos temos o desenvolvimento da história da redenção até
chegarmos até o Cristo.
Em Gênesis 1, lemos Deus
criando o mundo e o homem. Tudo o que Ele criou é bom. Mas, no capítulo 3 já
vemos que o homem decide quebrar sua aliança com Deus e através da
instrumentalidade de Satanás, o pecado entra no mundo e macula o espírito do
homem, colocando-o na condição de inimigo do SENHOR, separado de Sua santa
presença. Todavia, em Gênesis 3.15 existe uma promessa de que da descendência
da mulher – Eva – viria àquele que iria destruir Satanás e sua obra perversa. E
o desenrolar do Antigo Testamento nos mostra Deus suscitando uma semente até
que chegue a plenitude dos tempos (Gl 4.4) e a profecia se cumpra ao nascer
Jesus, nascido de uma mulher e debaixo da lei.
Como o ser humano se
tornou incapaz de se achegar a Deus, por conta do pecado, foi preciso que Deus
estabelecesse o resgate. E para isso um inocente assumiu o lugar dos pecadores.
Jesus Cristo é um substituto legal que em si suportou toda a ira dos pecados
sendo expurgados. Por Deus ser santo, não pode conviver com o pecado, e por
isso não poderia simplesmente perdoar e deixa-lo impune. A misericórdia do
Senhor não acontece a despeito de sua justiça. O pecado deveria ser punido e
seus efeitos no homem derrotado para que pudéssemos ter reconciliação.
O autor da carta aos
Hebreus nos diz que sem derramamento de sangue não há remissão de pecados (Hb
9. 22). Falando de todo o sistema sacrificial da antiga aliança, o autor mostra
que eram apontamentos ao sacrifício definitivo de Cristo, por isso que ele é
chamado de Cordeiro de Deus, e foi imolado antes da fundação do mundo (Ap 13.8
e 1 Pd 1.19-20). Como o animal do sacrifício, e, ao mesmo tempo, sacerdote que
estava mediando nossa relação com o Pai, Cristo foi nosso substituto, o segundo
Adão que através de sua obediência perfeita, atendeu os critérios para receber
o pagamento de nossos pecados e assim nos justificar.
A
OBRA DA CRUZ
Cristo sendo nosso substituto,
e morrendo na cruz, realizou aquilo que não poderíamos. A Escritura usa quatro
termos para falar sobre o que foi realizado através da morte vicária de nosso
Salvador, vejamos agora o que eles querem dizer.
–
Propiciação: É o sacrifício que serve para aplacar a ira de alguém
que foi ofendido. No nosso caso, ofendemos ao Criador através de nossos pecados,
por isso, a propiciação seria um fator apaziguador, pelo qual Deus não nos
puniria por nossos pecados. O sacrifício de animais no Antigo Testamento tinha
esse caráter, por isso que o local onde o sangue era aspergido chamava-se propiciatório.
Cristo na cruz é a nossa propiciação (1 Jo 2.2 e 4.10).
–
Expiação: É o ato que promove reconciliação, reaproximação,
perdão e purificação mediante sacrifício. O sangue dos animais ilustrava o
sangue de Cristo vertido no Calvário. Jesus expiou nossos pecados.
–
Justificação: Ter a culpa removida e sermos declarados justos
diante de Deus é um dos efeitos da expiação. Não somos considerados justos
pelos nossos méritos. A justificação vem pelo derramamento de sangue inocente. O
sacrifício de Cristo nos justifica (Rm 3.24-25), e de uma vez por todas (Hb 9),
sem necessidade de continuar sacrificando.
– Santificação: Seguindo a justificação vem a santificação. Dentro da
Arca estava a Lei (Dt 10.2 e Hb 9.5). Por cima da Lei havia o sangue da
expiação, derramado sobre o propiciatório. Isso nos mostra que não é a
obediência a Lei que me leva ao Cordeiro (Cristo). É o Cordeiro que me leva a
obedecer a Lei. Guiados por Jesus, santidade é um caminho real, pois nele,
somos separados para as boas obras.
Assim sendo, a obra de
Cristo tem grande valor para nós, e sem ela não teríamos paz com Deus, continuaríamos
mortos em nossos delitos e pecados, vivendo debaixo de sua ira. Mas foi por sua
infinita misericórdia que Cristo nos foi dado, para que nele nós obtivéssemos a
vida.
MORTE
REAL
O Credo enfatiza que a
morte de Cristo foi real e não figurativa. Ele foi sepultado, após morrer
crucificado, que era uma ultrajante pena de morte aplicada no Império Romano aos
mais vis criminosos. Isso está registrado nos quatro evangelhos, de forma que
basta lê-los para nos certificarmos disso. Todavia, um grupo herético
(gnósticos) negava que Jesus havia morrido, pois para eles, Cristo tinha apenas
uma aparência corpórea, mas não tinha um corpo real. Ora, isso faz com que a
morte de Cristo não seja real, logo, ele não seria o nosso substituto. Mas não
é isso que a Escritura nos diz e precisamos afirmar categoricamente que o Verbo
se fez carne (João 1).
Uma ênfase de que Cristo
morreu de fato é a sentença “desceu ao
mundo dos mortos” ou “desceu ao Hades”.
Esta é uma frase que não constava primeiramente no Credo, mas foi acrescida a
ele por volta do século 7. Antes disso, a expressão era usada como substituta
da frase “foi sepultado”, mas o seu
emprego sendo colocado após a frase que antes a substituía, tal como lemos
hoje, gerou uma série de interpretações.
Hades é
para os gregos o mundo dos mortos, onde estão todos que faleceram. Os bons
ficam no lugar chamado Elísio e os maus no Tártaro, que seriam os dois compartimentos
deste mundo. A cristianização desse termo o colocou como sendo o Inferno e daí
houve uma corrente que começou a defender que após a sua morte, Cristo foi
pregar aos cativos no Inferno ou foi lá para proclamar a sua vitória, como
creem os luteranos.
No Antigo Testamento, Sheol era a designação do lugar dos
mortos, mas também podia ser, dependendo do uso, sepultura. Hades foi muitas vezes usado como
sinônimo de Sheol. Pedro usou a
palavra em Atos 2:27, quando citou o Salmo 16:10 – que usa Sheol. Isto pode nos levar a concluir que “desceu ao Hades” sirva de ênfase ao sepultamento de Cristo.
A tradição reformada, a partir
de Calvino, interpreta a frase como sendo enfática. Sobre o porquê desta sentença
está no Credo (pergunta 44), o Catecismo de Heidelberg responde:
“Porque meu Senhor Jesus Cristo sofreu, principalmente
na cruz inexprimíveis angústias, dores e terrores. Por isso, até nas minhas
mais duras tentações, tenho a certeza de que Ele me libertou da angústia e do
tormento do inferno”.
O Catecismo Maior de Westminster
(Resposta a pergunta 50) também diz que “A humilhação de Cristo depois da sua morte consistiu
em ser ele sepultado, em continuar no estado dos mortos e sob o poder da morte
até ao terceiro dia; o que, aliás, tem sido exprimido nestas palavras: Ele
desceu ao inferno (Hades)”.
CONCLUSÃO
Jesus sofreu não apenas na
sua crucificação. Toda sua vida foi de aflição. Santo, teve que habitar num
mundo corrompido pelo pecado, sendo tentado em tudo, mas sem pecar, como nos
diz o texto sagrado (Hb 4.15). Experimentou o descrédito daqueles que eram o seu
povo e lidou com o ódio de determinado grupo religioso. Jesus foi traído por um
de seus discípulos e negado pelos outros ao ser preso. Homem de dores!
Na crucificação, apesar de
toda dor física, havia a terrível angústia de ser punido e abandonado por seu
Pai, pois ali estava representando a figura da vileza humana, mesmo sendo Ele
alguém que obedeceu plenamente toda a lei. Aquela aflição sofrida na cruz era
demais para nós, não suportaríamos, todavia, Ele a suportou em nosso lugar para
que ficássemos livres. O fardo do pecado foi desatado de nossas costas e os que
creem em seu sacrifício não sentirão os tormentos infernais, pois Cristo já
suportou tais tormentos. Por isso regozijemo-nos na mensagem da cruz. Ela é boa
nova para todo o que em Cristo Jesus depositar a sua fé.
Soli
Deo Gloria
***
Autor: Pr. Thiago Oliveira
Divulgação: Bereianos
Leia também:
Série Credo Apostólico – Parte 1: Um Símbolo da Fé Cristã
Série Credo Apostólico – Parte 2: Pai, Todo Poderoso, Criador
Série Credo Apostólico – Parte 3: Jesus Cristo é o Senhor
Série Credo Apostólico – Parte 4: O Redentor no Espaço-Tempo
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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos.