O despertador toca e você sabe que é hora de acordar e gastar um tempo com Deus, mas a cama está muito boa, você está cansado e, afinal, o dia será longo. Então você decide dormir mais alguns minutos, enquanto ouve no fundo de sua mente: culpa!
No trabalho, você se dá conta de que tem uma tarefa que precisa entregar hoje e não se dedicou completamente, mas agora não terá tempo. Portanto, você entrega uma versão abaixo do seu potencial. Contudo, está entregue, não? Mais uma vez você ouve em sua mente: culpa!
No intervalo você verifica suas redes sociais e descobre que o aniversário daquele amigo foi ontem e você não deu parabéns. Você escreve rapidamente e diz que o dia foi muito corrido. Culpa!
Outro amigo pediu para conversar, mas você está correndo e não tem tempo, ou pior, sabe que a conversa será desgastante. Assim, você novamente adia o encontro. Culpa!
Na hora do almoço, você sabe que se comprometeu a cuidar da alimentação, mas aquela sobremesa a mais está tão boa… Você decide comer com a promessa de que amanhã levará a sério sua dieta. Culpa!
A culpa pode ter tanto um aspecto paralisante quanto um aspecto saudável.
Você percebe como poderíamos continuar alistando essas situações imaginárias (ou nem tanto)? O fato é que convivemos com uma leve e indistinta sensação de culpa. Alguns sofrem de culpa de forma patológica. Outros parecem conviver com uma sensação desagradável de que precisam se explicar o tempo todo… No entanto, a culpa pode ter tanto um aspecto paralisante quanto um aspecto saudável.
Culpa é um sentimento humano desde o jardim do Éden. É certo que o ser humano não sentia culpa antes da Queda. Na verdade, lemos sobre a primeira vez que a culpa invadiu o coração humano logo após a Queda:
“Então os olhos de ambos se abriram; e, percebendo que estavam nus, costuraram folhas de figueira e fizeram cintas para si. Ao ouvirem a voz do Senhor Deus, que andava no jardim quando soprava o vento suave da tarde, o homem e a sua mulher se esconderam da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E o Senhor Deus chamou o homem e lhe perguntou: – Onde você está? Ele respondeu: – Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi.” (Gênesis 3.7-10)
Quando perceberam que estavam nus, o homem e a mulher logo se cobriram. Essa descrição é muito reveladora, pois é óbvio que eles sabiam que estavam nus antes da Queda. A novidade foi uma sensação de inadequação. Uma sensação de que estar nu não era correto – uma sensação de culpa e de vergonha. Também é muito reveladora a solução encontrada para essa sensação: eles se cobriram. Cobrir-se não solucionou o problema, apenas ocultou o que eles julgavam inadequado. Culpa e vergonha com frequência nos levam a ocultar o que julgamos ser inadequado. Inventamos desculpas e apresentamos (nem que seja somente para nós mesmos) argumentos que justifiquem nossos erros ou inadequações.
Culpa e vergonha com frequência nos levam a ocultar o que julgamos ser inadequado. Inventamos desculpas e apresentamos argumentos que justifiquem nossos erros ou inadequações.
No entanto, culpa e vergonha não são a mesma coisa. O professor Dan DeWitt escreve: “Culpa é, em geral, ligada a um evento: eu fiz algo errado. Vergonha é ligada a uma pessoa: eu sou mau. Culpa é a ferida, vergonha é a cicatriz. Culpa é isolada ao indivíduo, vergonha é compartilhada”[1]. Na passagem de Gênesis acima, vemos o homem se escondendo de Deus; agora, quando o Criador o chama, ele confessa seu medo por estar nu (repare que seu medo não é por seu pecado, mas pela consequência). Não só isso, mas logo depois, no verso 12, ele faz o que fazemos com tanta frequência: passa a culpa adiante. Adão transfere sua culpa para a mulher e para Deus.
Não estaremos nos baseando em algo que ofendeu a natureza de Deus toda vez que sentirmos culpa. Existem momentos em que nossa culpa se baseia em expectativas pessoais, muitas vezes irreais. A expectativa de ter filhos perfeitos, por exemplo, certamente leva pais cristãos a lidar com o sentimento da culpa quando seus filhos se mostram aquém daquilo que sonharam. Dessa forma, podemos entender que existe culpa verdadeira e culpa “falsa”. A sensação ou os sentimentos são iguais, mas sua origem e solução, não. Segundo a escritora Valorie Burton:
“Em uma perspectiva espiritual, a culpa falsa é uma arma que o Inimigo usa para roubar sua alegria, condenar a própria essência de quem você é e mesmo matar seus sonhos. […] Ao contrário de uma culpa autêntica, a culpa falsa é um sentimento e não um fato. É a condenação que sussurra: ‘Você não é bom ou boa o suficiente. Você não está fazendo o suficiente. Você nunca faz nada certo. Você precisa pagar por seus erros’.”[2]
Tenho refletido que a culpa falsa tem algumas características que nos ajudam a identificá-la: (1) baseia-se frequentemente em coisas fora de seu controle; (2) baseia-se em expectativas humanas (suas ou de outra pessoa) frustradas e não de Deus; e (3) baseia-se mais em reações de pessoas do que numa quebra de princípios.
No entanto, a culpa também pode ser autêntica. Davi derrama seu coração diante de Deus ao confessar sua culpa nos Salmos 32 e 51. A culpa autêntica nos leva a um arrependimento autêntico e, por fim, à liberdade. Ao invés de nos levar a falsas desculpas e isolamento, a culpa autêntica – quando tratada diante de Deus – nos leva a um relacionamento mais íntimo com o Pai e a uma gratidão maior pela graça dele.
Minha oração é que tanto você quanto eu possamos examinar nossas sensações de culpa, nos livrando das culpas falsas e trazendo aos pés da cruz aquelas que são autênticas.
Notas
- Dan DeWitt, “The Difference between Guilt and Shame”, The Gospel Coalition, 19 fev. 2018. Disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/article/difference-between-guilt-shame/.
- Valorie Burton, “Authentic Guilt vs False Guilt”, FaithGateway, 31 ago. 2021. Disponível em: https://www.faithgateway.com/authentic-guilt-vs-false-guilt/#.YUHfdZ1KiUk.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.