Um fenômeno curioso tem tomado as redes sociais com certa proeminência nos últimos 2 anos. Tenho visto muitos jovens se interessarem pela fé reformada e, por consequência, se interessarem por alguns assuntos teológicos complexos como pré-milenismo, aminelismo e pós-minelismo.
Se por um lado o debate teológico buscando a máxima fidelidade à Santa Escritura é extremamente positivo, ele também pode ser destrutivo quando feito pelas motivações erradas. Algumas dessas questões difíceis foram estudadas e discutidas durante séculos por grandes mentes cristãs, capazes e, principalmente, maduras. No meu entender, para falar de certos assuntos, experiência e maturidade cristã são fundamentais (elas não vem somente com idade, é claro, mas esse geralmente é o caso).
Não por acaso, no afã de ganhar uma discussão na rede e ter o ego massageado por aplausos ou likes, muitos têm condenado (até mesmo ao inferno!) aqueles que apresentam opiniões contrárias e promovendo um circo de discussões bizarras nas redes sociais, que não contribui para o avanço do reino de Deus. Se questionados quanto a essa conduta, respondem afirmando que precisamos de uma geração de inconformados, que fará a diferença e salvará a igreja brasileira (ok… houve um pequeno exagero da minha parte, mas você entendeu).
Tendo apresentado o cenário, gostaria, então, de estabelecer o objetivo deste texto que será justamente falar a respeito do que considero um inconformismo bíblico, utilizando por base o texto de Romanos 12:1-2.
“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” Rm 12.1-2
Esse texto é amplamente conhecido e já o vi sendo utilizado em sermões diversas vezes. No entanto, considero que essa passagem, apesar de parecer fácil de compreender, carrega dentro de si alguns ensinamentos muito profundos e pertinentes. O resumo do texto é: Paulo roga aos cristãos que façam duas coisas: (1) apresentem os seus corpos a Deus como um sacrifício vivo, santo e agradável, o que seria o seu culto racional; e (2) não se conformem com este século, mas se transformem por meio de uma renovação das suas mentes. A pergunta que precisamos fazer é: “o que Paulo quis dizer com isso tudo?”.
Inicialmente, precisamos compreender o significado de “apresentar nossos corpos como sacrifício”. João Calvino, ao comentar esse trecho do versículo, diz que o fato de sermos sacrifícios de Deus nos diz que pertencemos totalmente a Ele, que nenhuma parte de nosso ser é nossa ou de qualquer outro que não seja Deus. Além disso, o Rev. John Stott acrescenta: “o apelo evangelístico tradicional é que entreguemos nossos corações a Deus, não nossos corpos. Mas nenhum culto é agradável a Deus se for só interior, abstrato e místico; precisa se expressar em atos concretos de serviço executados por nossos corpos”.
Portanto, quando Paulo fala de apresentar nossos corpos como sacrifício, ele está falando de negar o nosso eu e viver para a glória de Deus; de abandonar as nossas vontades e desejos egoístas e dedicarmo-nos para a obra de Deus; de abandonar os nossos desejos pecaminosos e nos voltarmos para Deus; ou seja, nos entregarmos sem reservas, por inteiro. Nas palavras de Cristo:
“… Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quer salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará” Lc 9.23-24
A primeira coisa que precisa ficar clara, portanto, irmãos, é que o evangelho requer de nós uma entrega completa. Não há como viver o evangelho e continuar praticando as obras do velho homem. Não há como adorar a Deus e ao mundo. Ou você serve Cristo, ou você serve o sexo e a pornografia. Ou você serve a Cristo, ou você serve a embriaguez. Ou você serve a Cristo, ou você serve a mentira, a esperteza. Não é possível viver o evangelho liberal que tanto tem sido pregado por aí. Nós devemos apresentar nossos corpos, todo nosso eu, como sacrifícios a Deus. A entrega é completa e não, parcial.
Outro ponto que precisamos compreender é o caráter desse sacrifício, que segundo Paulo deve ser “vivo, santo e agradável a Deus”. Bom, Calvino nos auxilia novamente a responder essa pergunta. Segundo ele, Paulo utiliza o termo sacrifício vivo para enfatizar o que já mencionamos, a respeito do cristão entregar-se por inteiro à Cristo.
Continuando, para compreendermos o caráter santo do sacrifício, precisamos entender a importância da santidade no caráter de Deus. Nas palavras de R.C. Sproul,
“Em diversas ocasiões, a Bíblia repete algo por 3 vezes sucessivamente. Mencionar algo 3 vezes seguidas é eleva-lo a categoria de superlativo… Somente uma vez nas Escrituras sagradas um atributo de Deus é elevado ao terceiro grau. Somente uma característica de Deus é mencionada três vezes seguidas. A Bíblia diz que Deus é santo, santo, santo. Não diz que Ele é meramente santo, ou santo, santo.” R.C. Sproul
Por Deus ser santo, ele requer um sacrifício santo. E isso ocorre ao longo de toda Bíblia. No AT eram os animais perfeitos, separados para tal causa. No NT foi o homem justo e perfeito, o primogênito de Deus, separado para limpar o pecado dos filhos de Deus. Aqui vale dizer que nossa entrega como sacrifício não visa a expiação. Isso já foi feito por Cristo na cruz do calvário. Porém, a vida do cristão regenerado deve ser marcada por uma constante busca por santidade. Como a palavra de Deus nos diz, a graça não nos dá um passe livre para a libertinagem. Como Paulo diz:
“Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?…Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros de seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei e sim da graça” Rm 6.1,2; 12-14
O teor do apelo de Paulo tanto no capítulo 6 quanto no capítulo 12, onde ele roga aos seus irmãos, é de quem apela ao coração dos leitores. A meu ver, Paulo se utiliza aqui do desejo que deve haver em todo cristão genuinamente convertido de querer agradar a Deus, que é santo, santo, santo. É por esse motivo que o cristão busca uma vida santa mesmo sabendo que já foi salvo em Cristo. Ele deseja tão somente agradar o santo, santo, santo por amor e gratidão a Ele.
Assim, queridos, a segunda coisa que precisa ficar clara aqui é que o fato de termos sido salvos em Cristo pela graça de Deus não nos habilita a viver uma vida de libertinagem. Pelo contrário, agora que fomos regenerados devemos buscar a santidade em cada área de nossas vidas. Porém, não por medo da condenação do inferno ou por desejo de obter salvação por nossas boas obras, mas por amor a Deus, por sabermos de sua santidade e por desejarmos do fundo de nosso coração agrada-lo. Se dedicarmos nossas vidas a esse propósito, podemos ter a certeza de que estamos sendo um sacrifício agradável a Deus e prestando aqui o que Paulo chamou de culto racional.
Porém, para chegarmos, enfim, ao inconformismo precisamos questionar ainda uma última colocação de Paulo. Esta é a transformação por meio da “renovação da nossa mente”. No meu entender, a transformação a que Paulo se refere aqui é o “nascer de novo”, essa mudança radical no curso de nossas vidas. E essa mudança ocorre por meio dessa renovação da mente. Isso nada mais é do que o processo de santificação, que é conduzido pelo Espírito Santo de Deus e tem por objetivo nos conformar a cada dia com a pessoa de Cristo; nos fazer a cada dia mais parecidos com ele. Nas palavras de Jesus,
“…quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as cousas que hão de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” Jo.16.13-14
Portanto, somente conseguiremos essa transformação por meio do conhecimento de Deus que nos é dado pelo Espírito Santo a cada vez que, por exemplo, meditamos na Bíblia. Essa é uma função vital do Espírito Santo, que é muitas vezes negligenciada. Ele nos enche com o conhecimento de Deus para que possamos ter assim nossas mentes renovadas e, por consequência, vidas transformadas. Ou seja, o correto conhecimento acerca de Deus produzirá uma renovação em nossas mentes que, por consequência, transformará os nossos atos, a nossa conduta.
Assim, outro ponto importante que eu gostaria de estabelecer aqui é que as devocionais e o estudo bíblico sério são imprescindíveis ao cristão porque eles são o principal meio utilizado por Deus para mudar uma vida, para santificar um filho Seu.
Não me entendam mal. É maravilhoso ler livros sobre Deus, sobre o evangelho, sobre teologia reformada, sobre homens de Deus do passado e etc. O problema é que quando lemos, segundo Arthur Schopenhauer, “outra pessoa pensa por nós. Repetimos apenas o seu processo mental”. Isso significa que repetir grandes frases (e até sermões) de homens como Jonathan Edwards e Charles Spurgeon não garante que tenhamos, de fato, interiorizado suas mensagens. É, portanto, fundamental gastar tempo meditando nas Escrituras e orando para que o Espírito de Deus nos conceda um conhecimento tal que se interiorize em nós a ponto de modificar nossos atos.
Como disse acima, meu objetivo com essa exposição da palavra é falar sobre inconformismo. E há um pequeno vocábulo que é fundamental para que possamos fazer isso. Paulo utiliza o vocábulo “mas” entre o não conformar-se com este século e o ser transformado pela renovação da mente, dando uma ideia de completa e explícita oposição entre as duas coisas. Isso significa que a única maneira de se inconformar com o mundo, com a moralidade caída da humanidade, com o pecado reinante em nossa época é se conformar com a imagem de Cristo.
R.C. Sproul em seu livro “God is holy and we are not” menciona que o que mais incomoda o ímpio é o santo (e eu concordo com ele). Logo, se você deseja ser, de fato, um grande inconformado, alguém que luta pelo evangelho e que faz a diferença, o conselho que a Palavra te dá é: concentre sua luta primeiramente contra o seu próprio pecado; negue a si mesmo; busque a santidade; busque corrigir os seus atos; olhe primeiro pra si, para dentro do seu coração; se volte para a vontade de Deus; busque verdadeiramente cumprir a Sua vontade e os Seus estatutos.
Eu sei que é difícil para nós, jovens, o lidar com a ansiedade de querer ser relevante e ser parte de uma grande batalha. Acreditem quando digo que com meus 24 anos ainda sofro muito com isso. Por isso, gostaria de dizer para nós, jovens, que não deixemos de lutar pelo evangelho, mas tenhamos a noção de que a melhor maneira de um jovem cristão gastar seu tempo é trancado no seu quarto, meditando na palavra de Deus e orando em busca de santidade. Saiam um pouco das redes sociais, das grandes discussões, busquem a Deus e trabalhem, por exemplo, para mudar a realidade de suas comunidades locais. E no tempo certo, Deus te fará conhecer o seu chamado, em qual área você vai batalhar pelo reino de Deus e como você poderá ser ainda mais relevante.
Portanto, se você deseja ser um inconformado e verdadeiramente fazer a diferença, antes de tudo, seja santo porque Deus é santo (1 Pe 1.16).
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Referências:
– The complete biblical commentary collection of John Calvin, John Calvin.
– God is Holy and we are not, R.C. Sproul.
– Romanos, o poder do Evangelho, John Stott.
– A arte de escrever, Arthur Schopenhauer.
Autor: Pedro Franco, 24 anos, é estudante de farmácia pela UFRJ e diácono na Igreja Presbiteriana Adonai (RJ).
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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos.