Nesta última sexta feira, por volta das 23 horas, minha esposa e eu nos preparávamos para ir para o quarto. A semana havia sido repleta de compromissos, com um adicional de doença e algumas viagens curtas. O tempo começava a esfriar e o sábado prometia ser tomado por novos compromissos. Eu, pessoalmente, estava pronto para ir pra cama, ler algo leve e cair de sono. Foi então que ouvimos uma série de estampidos. Parecia que alguém estava martelando uma tábua. Sabíamos que, devido ao local onde moramos, aquilo só poderiam ser tiros. E foram vários; não contei, mas me pareceram mais de vinte. Infelizmente esta não é uma ocorrência tão rara em nosso bairro. Agradeci mentalmente mais uma vez à proteção de Deus, pedi pelos meus filhos e tirei o evento de minha cabeça.
Uma hora depois fui acordado por um investigador da polícia pedindo para verificar as gravações de vídeo das câmeras de segurança de nosso condomínio. Fui então envolvido em um evento com o qual eu normalmente tomaria muita distância. Nestes últimos dias o caso foi examinado e investigado. Muito embora as investigações não tenham sido concluídas, o que parece certo é que foi um acerto de contas entre traficantes. Aparentemente um grupo realizou uma emboscada a poucos metros da entrada do local onde moro e assassinou um indivíduo com quinze tiros. A vítima tinha contra si, além de extensa ficha policial, o fato de que estava foragida da justiça. Foi atraída à nossa rua para um encontro e ali assassinada sem qualquer preocupação aparente dos atiradores em ocultar sua identidade.
Para alguns, mesmo cristãos, a reação é “um vagabundo a menos…”. Eu posso entender esta reação diante da insegurança, da aparente impunidade, do relativo domínio de facções sobre nossa cidade. Ao mesmo tempo, comecei a refletir sobre este homem que foi morto de modo tão brutal e acintoso. Certamente ele teve uma mãe. Será que ela o amou? Será que seu pai estava presente? Será que ele como homem mostrou algum interesse pelo filho? Será que ele teve algum exemplo positivo quando pequeno, ou cresceu em meio à criminalidade? Será que foi abusado pela violência? Será que alguém tentou lhe ensinar algum valor de vida? Será que teve medo enquanto crescia? O que ele fazia quando pequeno e tinha medo? Chorava? Será que aprendeu desde pequeno que “homem não chora”? Será que apanhou ou foi ridicularizado por chorar? Será que foi “recrutado” pelo crime quando menor? Quando foi que ele assumiu este estilo de vida? Será que tentou deixar esta vida de crimes?
O propósito de Deus não é meramente realizar justiça. Se assim o fosse, a humanidade já teria sido exterminada.
Estas e outras tantas questões me fazem refletir sobre o término de uma vida que pode ter sido terrível (ou não). Sem dúvida este era um homem envolvido com o crime, talvez muito violento. Se estava envolvido com o tráfico, então cooperava para a miséria de centenas, talvez milhares de pessoas. Se ele merecia a morte? Certamente que sim. No entanto, antes de encerrarmos o caso, deixe-me afirmar que assim como ele, você e eu também a merecemos; na verdade, nascemos já condenados, não por nossos atos, mas pela descendência de Adão (“no dia em que dela comer, certamente você morrerá”; Gênesis 2.17b).
Qual o valor de uma vida? Não importa como esta pessoa viveu, sua alma tem um valor imensurável. Nosso valor não pode ser medido por nossas escolhas, muito embora elas determinem nossa influência e muitas das consequências com as quais vamos viver. No segundo livro de Pedro, capítulo 3, verso 9, lemos:
O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.
O propósito de Deus não é meramente realizar justiça. Se assim o fosse, a humanidade já teria sido exterminada. Ele deseja que todos cheguem ao arrependimento. Ele certamente desejava que aquele homem morto com quinze tiros em minha rua após uma vida de crimes, gerando e sofrendo miséria e dor, chegasse ao arrependimento. Paulo afirma em 1Timóteo 2.3-6:
3Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, 4que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. 5Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus, 6o qual se entregou a si mesmo como resgate por todos. Esse foi o testemunho dado em seu próprio tempo.
Tenho um enorme respeito por meus irmãos reformados que acreditam em redenção limitada. Eu, no entanto, continuo a crer que o efeito redentor da morte de Cristo se estende a todos, basta crer (João 3.16). Muito embora a Bíblia deixe muito claro que poucos serão salvos e que não há mérito nenhum naquele que é salvo, as explicações que tentam limitar a palavra “todos” no texto acima são simplesmente forçadas. O texto afirma que Deus deseja que todos os homens sejam salvos. Isso não significa que todos serão salvos (heresia do universalismo). Isso tampouco significa que a vontade de Deus foi frustrada (heresia da limitação do poder de Deus), mas que ele permite que nós humanos façamos escolhas que contrariem sua vontade moral. Mesmo meus irmãos reformados acreditam que Deus permite o pecado, mesmo que isso contrarie sua vontade moral.
Bandido bom não é bandido morto, pois se assim fosse, então humano bom seria humano morto… Bandido bom é bandido redimido como eu e você fomos. Certamente colhemos aquilo que plantamos e quando assim não for, é devido à misericórdia de Deus e não ao nosso mérito. Minha sincera oração é que como cristãos continuemos a lutar por uma sociedade mais justa, pelo fim da impunidade (em todos os níveis), por medidas tanto restritivas como restauradoras. Ao mesmo tempo, que nosso coração se alinhe com o coração de Deus – que deseja que todos cheguem ao arrependimento.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.