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Defendendo o indefensável


Apesar de ser sempre triste e surpreendente, não é algo novo haver casos de abusos por sacerdotes católicos. No entanto, esses têm se tornado mais e mais frequentes e por isso gerado consternação: histórias tanto de abusos sexuais cometidos por líderes evangélicos de todas as linhas teológicas, como uma repetida prática de acobertamento desses crimes por parte de autoridades eclesiásticas.

No início do mês de junho, Yago Martins, um importante teólogo brasileiro de linha conservadora, postou um vídeo em que traz à tona importantes denúncias reveladas na igreja evangélica norte americana[1]. Baseado em estudo cuidadoso de documentos feitos públicos pelo sistema judiciário daquele país, Yago denuncia tanto a prática dos abusos como o acobertamento desses crimes por reconhecidos teólogos e líderes evangélicos.

Tenho lido algumas críticas afirmando que nem todos os dados são verdadeiros, que há distorções ou mesmo “fake news”. No entanto, há também confissões que confirmam muitos dos relatos. Diante de repetidas acusações, a Convenção Batista do Sul dos EUA assumiu que, por anos, pastores que abusaram de suas ovelhas têm sido protegidos ou acobertados. No dia 15 de maio de 2022, foi publicado um relatório de uma investigação independente sobre esses fatos[2]. Em resumo, há relatos sobre 380 líderes de igrejas batistas que cometeram algum tipo de abuso sexual contra mais de 700 vítimas. A maioria destes foi condenada ou confessou seus crimes, mas há muitos casos em que pastores, igrejas ou organizações tomaram passos concretos de acobertar os abusos, incluindo confrontar, hostilizar e mesmo punir as vítimas. Diante do escândalo, a Convenção Batista do Sul dos EUA tem tomado posições corajosas (ainda que talvez tardias) em corrigir esses abusos e acobertamentos. Nas palavras do presidente daquela denominação, J. D. Greear:

Eu buscarei todos os meios possíveis para colocar os vastos recursos espirituais, financeiros e organizacionais da Convenção Batista do Sul para impedir os predadores em nosso meio.

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É óbvio que isso não é algo isolado entre batistas norte-americanos. Com certeza o problema está também entre nós evangélicos de todas as linhas no Brasil. Como é possível que um líder cristão defenda um abusador que usa de sua autoridade como líder espiritual para tirar vantagem de alguém sob seu cuidado? Quais são as linhas de raciocínio que levam alguém a justificar um ato assim? Como podemos identificar e denunciar essas posturas no nosso meio? Deixe-me apresentar alguns dos raciocínios distorcidos sobre os quais tenho lido ou ouvido:

Muito embora, em alguns casos, pessoas possam realmente se insinuar ou tentar seduzir líderes, o papel da liderança é proteger e cuidar do povo de Deus (Atos 20.28).

  1. A vítima se insinuou ou “seduziu” o líder cristão. Muito embora, em alguns casos, pessoas possam realmente se insinuar ou tentar seduzir líderes, o papel da liderança é proteger e cuidar do povo de Deus (Atos 20.28). Mesmo diante de uma tentativa de assédio, um líder cristão tem o dever de evitar que essa atitude resulte em uma relação inadequada. Na maioria das vezes, o que é alegado como insinuação é mais parte da disfuncionalidade e do pecado do abusador do que responsabilidade do abusado (veja o caso de Tamar, em 2Samuel 13.1-21).
  2. Ele confessou e se arrependeu, nós cremos na transformação do Espírito Santo. Essa postura revela uma certa ingenuidade e mesmo ignorância das dinâmicas que levam alguém a abusar sexualmente de outra pessoa. É verdade que Deus pode transformar instantaneamente alguém, libertando-o de uma tendência pecaminosa. No entanto, a realidade é que as dinâmicas que levam alguém a abusar são profundas e em geral precisam ser confrontadas e tratadas com muita profundidade para que haja transformação. No final, esse processo de transformação é quase sempre algo longo e não instantâneo (2Coríntios 3.18).
  3. Não é nosso dever “perdoar e esquecer”? Certamente é nosso dever perdoar como fomos perdoados. Ao mesmo tempo, precisamos distinguir entre perdão e restituição. A Bíblia relata inúmeras circunstâncias em que o perdão não afasta consequências. O caso mais conhecido é quando Davi adultera e manda matar o marido de Bate-Seba. Segundo as palavras do profeta Natã (2Samuel 12.9-14) Davi foi perdoado, mas Deus determinou três consequências: (1) a espada nunca se afastaria de sua casa, (2) suas mulheres seriam abusadas e (3) seu filho morreria. Ainda que perdoado (seu relacionamento com o Senhor tenha sido restaurado), um abusador tem de encarar as consequências de seu crime diante das leis do país.
  4. Mas ele é um “santo homem de Deus”! Aqui temos revelado mais um desvio em nossa teologia. Realmente temos sido grandemente abençoados com santos homens e mulheres. No entanto, cada um deles tem o mesmo potencial para o pecado que eu e você temos. E esse pecado não pode ser “descontado do crédito acumulado” por meio de bençãos. É Deus quem abençoa, somos apenas vasos. Davi era um homem segundo o coração de Deus, mas adulterou e foi mandante de um assassinato. Paulo revela a pecaminosidade de seu coração, mesmo convertido, em Romanos 7.24-25.

Temos sido grandemente abençoados com santos homens e mulheres. No entanto, cada um deles tem o mesmo potencial para o pecado que eu e você temos.

Abusos de qualquer forma são atos promovidos pelo Diabo (João 10.10), mas são realizados por humanos. São tragédias que afetam e ferem pessoas para o restante de suas vidas. Como cristãos, especialmente como líderes cristãos, somos chamados a cuidar dos que nos foram confiados (1Pedro 5.1-3). Minha sincera oração por mim e por você é que não sejamos encontrados acobertando pecados, mas promovendo a justiça de Deus (Mateus 6.33).

Notas

  1. Dois Dedos de Teologia, “Grandes Teólogos que encobrem abusos em suas igrejas”. Youtube, 2 jun. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ng2NtuLrnZo. Acesso em 20 jun. 2022.
  2. “Report of the Independent Investigation: The Southern Baptist Convention Executive Committee’s Response to Sexual Abuse Allegations and an Audit of the Procedures and Actions of the Credentials Committee”, 15 mai. 2022. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/6108172d83d55d3c9db4dd67/t/628a9326312a4216a3c0679d/1653248810253/Guidepost+Solutions+Independent+Investigation+Report.pdf

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Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.

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