Nestas últimas semanas assistimos como nação o desfecho do caso Cesare Battisti. Em 1979, ele, cidadão italiano, foi acusado de assassinato, sendo preso e julgado na Itália em 1979. Dali acabou fugindo para França em 1981, onde mais tarde foi acolhido pelo governo socialista de Mitterrand. Após algum tempo, em 2004, a França decidiu acolher um pedido da Itália para ele fosse extraditado. Com isso ele fugiu novamente, chegando em 2007 ao Brasil. Aqui foi preso por posse de documentos falsos, mas em 2009 recebeu o status de refugiado político baseado no “fundado temor de perseguição por opinião política”. Em 2011 ele foi libertado, apesar da confirmação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de sua condenação por falsificação de documentos. Em 2017, foi novamente preso tentando deixar o Brasil, mas acabou sendo solto em seguida. Finalmente, no ano passado, o governo de Michel Temer voltou a considerar sua extradição a partir de um novo pedido do governo italiano. Assim, no final do ano houve a emissão de um mandado de prisão. A essa altura, Battisti já havia fugido, agora para a Bolívia, onde foi preso e deportado para a Itália a fim de cumprir uma pena de prisão perpétua.
Este caso levanta uma questão importantíssima para todo ser humano ou governo. É a questão de como tomar decisões justas e qual o papel de princípios em nossa tomada de decisões. Por exemplo, é legítimo mentir para salvar uma vida? É legítimo interromper uma gravidez para dar alívio emocional à uma mãe? É legítimo usar de força letal (capaz de encerrar uma vida) para defender outra vida? Em resumo, parece que nas nossas decisões elegemos alguns princípios como fundamentais e outros como secundários. O que torna esta questão ainda mais complexa é que em certas situações priorizamos alguns princípios, mas em outras situações priorizamos outros… Por exemplo, mesmo o mais ferrenho “desarmamentista” provavelmente gostaria de ter sua família defendida de um agressor, mesmo que para isso o defensor precisasse usar de força letal.
A questão de como tomamos decisões e como amadurecemos em nossa tomada de decisões foi o tema do estudo do conhecido psicólogo e aluno do suíço Jean Piaget, Lawrence Kohlberg. O estudo em si é muito interessante; no entanto, uma de suas conclusões é ainda mais relevante à questão acima. Após anos de pesquisa em diversos países (inclusive o Brasil), ele entendeu que menos de 10% dos adultos tomam decisões baseadas em princípios. Portanto, a maioria dos adultos toma decisões morais (o que é certo e o que é errado) baseadas no ganho pessoal ou na opinião de outros. Muito embora muitos de nós já tivéssemos esta impressão, ver uma pesquisa apresentando esses dados é surpreendente.
A maioria dos adultos toma decisões morais (o que é certo e o que é errado) baseadas no ganho pessoal ou na opinião de outros.
A questão do caso Battisti se torna relevante devido aos argumentos usados em sua defesa e na justificativa do asilo político que lhe foi concedido. O argumento era de que ele seria um perseguido político. Uma breve pesquisa mostra que, além dos assassinatos pelos quais foi condenado, ele já havia cometido crimes menores (sem nenhuma conotação política) e já havia passado pela prisão. Nos anos em que esteve asilado na França, a justiça francesa finalmente chegou à conclusão de que deveria extraditá-lo. A Itália e mesmo a França têm experimentado um período de democracia amplamente apoiado por suas instituições. De qualquer forma, quando a defesa de Battisti apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos, a resposta após análise por um conselho internacional de juristas é de que o processo que resultou em sua condenação era válido e não feria qualquer princípio jurídico. Um dos argumentos da Corte Europeia é de que não se pode admitir um assassinato por divergência ideológica.
A decisão da Itália, França e da Corte Europeia demonstram que elegeram um princípio (não se pode justificar um assassinato por razões ideológicas) e decidiram a partir dele. Será que o governo de Luís Inácio Lula da Silva simplesmente seguiu outro princípio? Será que aquele governo acreditava que ideologia justifica assassinato? Será que, por Cesare Battisti ser um integrante de um grupo de extrema esquerda, o assassinato se tornou tolerável? Caso fosse ele um integrante de um grupo neonazista, teria ele recebido o mesmo tratamento? Parece bastante seguro afirmar que este é um caso em que o governo brasileiro na época decidiu privilegiar um indivíduo, não com base em princípios, mas em ideologia. Ainda que agindo dentro da lei, o sistema de então decidiu ignorar evidências e privilegiar a defesa de uma ideologia. Esta decisão não foi tomada a partir da descoberta de provas que poderiam inocentar o réu. Foi suficiente ser ele membro de um grupo radical de extrema esquerda.
No entanto, não devemos ser muito rápidos em lançar pedras. Infelizmente, em meus vários anos como pastor já assisti irmãos ou mesmo igrejas agindo da mesma forma. Diante de evidências que pareciam confrontar um amigo, familiar ou conhecido, buscavam brechas na Palavra para justificar algo que ainda há pouco vinham condenando. Alguns, recusando-se a ouvir as evidências de um desvio, decidem ouvir apenas um lado da história. Às vezes cristãos ou a igreja institucional parece seguir mais a Maquiavel, em sua famosa frase: “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei”.
Como então encarar decisões e continuar alinhado com Cristo? Como posso me cuidar para que preferências ideológicas ou pessoais não tomem o lugar da direção de Deus em minha vida. Uma questão mais profunda é: qual o papel da verdade e de princípios nas decisões que devo tomar? Já tratei da questão do discernimento e como desenvolvê-lo em outro artigo: “Sobre Falsos Cristos e Discernimento”. Ali expus brevemente o texto de Hebreus 5.14:
Mas o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptos para discernir tanto o bem quanto o mal.
Hoje eu gostaria de estudar e examinar outro texto que também fala de escolhas, mas da perspectiva da justiça. No famoso trecho que conhecemos como o Sermão do Monte, Jesus declara a seguinte verdade:
Pois eu digo que, se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus. (Mateus 5.20)
Uma vez mais, o conceito de justiça tanto no Novo como no Antigo Testamentos ultrapassa em muito a questão meramente jurídica. Justiça refere-se à retidão, a um viver que é correto e alinhado com a verdade. Neste sentido, Deus é justo e ele é ao mesmo tempo o único parâmetro definitivo da justiça. Justo é o que se alinha com o caráter moral de Deus, injusto é tudo que se afasta deste caráter moral.
Assim, quando Jesus afirma que nossa justiça deve ultrapassar a justiça dos fariseus, ele não está se referindo ao cumprimento das leis e ordenanças, mas a uma atitude de coração. O fato é que mesmo o melhor sistema de leis pode ser distorcido para contrariar seu intuito original. No caso de Battisti, buscando defender um indivíduo que afirma lutar por uma mesma ideologia, todo um governo distorceu as leis para que fosse concedido asilo a um criminoso.
Justo é o que se alinha com o caráter moral de Deus, injusto é tudo que se afasta deste caráter moral.
Ao nos depararmos com qualquer decisão importante, precisamos nos lembrar de alguns pontos:
- Nosso coração é enganoso (Jeremias 17.9), por isso precisamos de um critério externo de verdade. Não se apoie em seu próprio entendimento, diz a Palavra (Provérbios 3.5). Nossas mentes e corações são complexos. Somos capazes de criar artifícios mentais impressionantes para justificar nossos pecados ou os daqueles a quem amamos ou queremos proteger. Para tornar nossa luta ainda mais complexa, nosso inimigo, Satanás, sempre buscará uma maneira de acrescentar mentiras muito bem contadas para fundamentar um pensamento errado. Na reveladora passagem de 2Coríntios 10.3-5, Paulo nos exorta a confrontar a mentira (sofismas), a combater nosso orgulho pessoal e a trazer todo pensamento em obediência a Cristo.
- Precisamos ter clareza em nossas convicções e princípios. “Cada um deve estar plenamente convicto em sua própria mente” (Romanos 14.5b). Neste capítulo, Paulo discute a questão de convicções em temas duvidosos e exorta os cristãos a desenvolverem uma convicção. Quais são os princípios nos quais você acredita? De modo geral, um excelente conselho é buscar alistar princípios nos quais você acredita antes de estar envolvido em uma situação em que laços de amizade tornarão a decisão muito mais custosa. Ou seja: você crê que o casamento é indissolúvel? Decida isso antes de se casar, pois com certeza haverá momentos em que esta vai parecer ser a única solução. Você crê que a mentira nunca conduz à vontade de Deus? Tome esta decisão com firmeza antes de enfrentar uma situação em que será tentado a apelar para uma “versão alternativa dos fatos” na tentativa de evitar sofrimentos para você ou para alguém de quem você gosta muito.
- Precisamos voltar à Palavra como nossa única regra de fé e vida. Só assim podemos nos assegurar que, numa decisão difícil, vamos seguir o caminho da justiça. Para mim, e para todo cristão sério, esse critério revelador da justiça de Deus é a própria Palavra. Como revelação escrita, ela nos foi dada para ensino, repreensão, correção e instrução na justiça (2Timóteo 3.16). Respondendo essa mesma questão, o salmista completa: “Guardei no coração a tua palavra para não pecar contra ti” (Salmo 119.11). Nessas e em muitas outras passagens, o ensino é um só: se você quiser viver uma vida justa, reconheça a Palavra de Deus como guia.
Minha sincera oração, por mim, por você, por nossas igrejas e pelo novo governo, é que decisões sejam tomadas com justiça, não com manipulação de leis ou com a distorção da verdade. Aqui cabe como exortação e como esperança as palavras de Paulo em Filipenses 2.14-16a:
14Façam tudo sem queixas nem discussões, 15para que venham a tornar-se puros e irrepreensíveis, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e depravada, na qual vocês brilham como estrelas no universo, 16retendo firmemente a palavra da vida.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.