Vivemos tempos de desconstrução de ideias, conceitos e valores antigos. Alguns devem mesmo cair, pois evidenciam distorções que vão diretamente contra o evangelho, como o machismo e o racismo. No entanto, parece que a onda revisionista não para aí. Como é característico do ser humano, movimentos que começam com boas intenções são logo “raptados” por interesses escusos e agendas perversas.
Um dos conceitos que tem sido desvirtuados é a expressão “lugar de fala”. A expressão foi lançada para defender que determinadas pessoas precisam ser ouvidas em suas opiniões e reinvindicações. No entanto, a expressão tem sido usada para interromper o diálogo, para cessar o debate. Assim, em várias discussões sobre aborto eu tenho ouvido que homens não devem falar ou manifestar suas opiniões. Por não passar pela gravidez, o homem “não tem lugar de fala” nessa discussão. Essa é uma distorção grosseira e mal-intencionada onde, teoricamente, para defender a liberdade de expressão, algumas pessoas perdem o direito de se manifestar.
Esse tema, assim como outros, se baseia em um princípio humanista de que cada um sabe o que é melhor para si mesmo. Nesse sentido surge uma desconfiança de quase qualquer tipo de autoridade. Como cristãos, sabemos que a decisão de Adão e Eva de tomar para si o direito de decidir o certo e o errado foi a própria origem da Queda. Ao tomar e comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 3), a humanidade assumiu esse direito, estabeleceu sua autonomia. Esse anseio pela autodeterminação tem chegado a todos os aspectos da vida humana. É o pensamento basilar de quem defende o aborto, de quem defende sexo irresponsável e de quem defende práticas que contrariam os limites estabelecidos por Deus.
Pastores e líderes têm se tornado cada vez mais secretários executivos, limitados a cumprir a vontade da maioria.
No campo da liderança cristã, seja em igrejas, seja em outras comunidades, percebe-se a mesma tendência. Pastores e líderes têm se tornado cada vez mais secretários executivos, limitados a cumprir a vontade da maioria. Copiando a máxima humanista, Vox populi, vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus), o papel desses homens e mulheres é mais levar adiante decisões escolhidas pela maioria do que indicar rumos apontados por Deus. O argumento desse desvio é justamente a ideia de serviço. Ou seja, o líder cristão é apenas um servo, portanto seu papel é cumprir a vontade do povo que lidera.
Há algumas semanas, eu escrevi o artigo “Um reino de cabeça pra baixo”. Nesse artigo, tratei do mandamento de Cristo de sermos servos e como isso desafia a concepção moderna de sucesso (Marcos 10.42-45). Examinei ali os primeiros versos da passagem conhecida como “lava-pés” (João 13). Nessa passagem fica claro que Jesus serviu por amor e por estar seguro tanto de quem era como de sua origem e propósito.
A passagem continua e há muito para aprendermos sobre a quem servimos. Servimos a Deus ou as pessoas? É óbvio que servimos os dois e que não há espaço na comunidade cristã para líderes autoritários e dominadores (1Pedro 5.1-5). O texto que quero destacar é João 13.5-10:
“Em seguida Jesus pôs água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido. Quando se aproximou de Simão Pedro, este lhe perguntou: ‘Vai lavar os meus pés, Senhor?’ Jesus respondeu: ‘O que eu faço você não compreende agora, mas vai entender depois.’ Então Pedro disse: ‘O senhor nunca lavará os meus pés!’ Ao que Jesus respondeu: ‘Se eu não lavar, você não terá parte comigo.’ Então Pedro lhe pediu: ‘Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça.’ Jesus respondeu: ‘Quem já se banhou não precisa lavar nada, a não ser os pés, pois, quanto ao mais, está todo limpo. E vocês estão limpos, mas não todos.’”
Quero destacar algumas verdades em meio a essa história tão rica. É importante observar que Pedro, com seu temperamento impulsivo, ainda não entendeu plenamente seu papel diante do Mestre. Ele ainda quer determinar como Jesus deve proceder. Se Jesus fizesse a vontade de seu discípulo, este perderia a benção da lição sendo ensinada. Na verdade, Pedro não tinha condições de avaliar a situação (v. 7). Não é raro que, em determinada situação, a pessoa sendo servida não tenha plena compreensão do que necessita ou do que precisa ser feito. Se o líder se submeter a ela, deixará de servir a essa pessoa.
Jesus continua gentilmente em seu propósito ao afirmar que Pedro “vai entender depois”. Em outras palavras, Jesus tinha clareza de seu chamado e do que fazia naquela situação específica. Ele, por meio de sua comunhão com o Pai, tinha um mandato divino. Deixar de cumpri-lo seria deixar de servir a Deus.
Não é raro que, em determinada situação, a pessoa sendo servida não tenha plena compreensão do que necessita ou do que precisa ser feito. Se o líder se submeter a ela, deixará de servir a essa pessoa.
Em um sentido muito claro, o propósito de Jesus era ministrar a seus discípulos (até o dia de hoje) deixando lições fundamentais. Ao rejeitar o papel de servir a vontade de Pedro, Jesus serviu a este mesmo Pedro, pois estava em sintonia com o Pai.
Em resumo, a quem servimos? Servimos a Deus, servindo pessoas. Servir pessoas sem um compromisso essencial de servir a Deus é tornar-se, na melhor das hipóteses, um demagogo e, na pior, um manipulador. Minha oração é que, em qualquer dimensão de liderança, você e eu tenhamos muito claro o compromisso de servir primeiro a Deus e, dirigido por ele, motivado por ele e orientado por ele, servirmos às pessoas que nos foram confiadas.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.