O caráter e situação de alguém que está se preparando para o Ofício Sagrado são interessantes além da capacidade de expressão. Essa pessoa, como o Mestre a quem professa amar e servir, está “destinada tanto para a ruína como para levantamento de muitos em Israel”. Em tudo o que é e em tudo o que faz, o bem-estar temporal e eterno, não apenas de si mesmo, mas de milhares pode estar envolvido. Ele é assaltado por perigos de todos os lados. Quaisquer que sejam seus talentos e conhecimento, se não tiver genuína piedade, provavelmente será não uma bênção, mas uma maldição para a Igreja. Mas esse não é o único perigo ao qual está exposto. Ele pode ter genuína piedade, bem como talentos e conhecimento, e, ainda assim, devido à indiscrição habitual, a algum defeito na sobriedade de mente – que é tão preciosa a todos os homens e especialmente àquele que ocupa uma posição pública –, ao amor pela novidade e inovação, ou ao amor pela distinção, que é tão natural aos homens, enfim, por isso tudo, em vez de edificar o “corpo de Cristo”, pode-se tornar um perturbador de sua paz e um corruptor de sua pureza. De modo que poderíamos quase dizer, qualquer que seja o desfecho com respeito a ele próprio, que “seria melhor para a Igreja se ele jamais tivesse nascido”.
Por conseguinte, cada parte do caráter daquele que se adianta rumo ao sagrado ministério: suas opiniões, seu temperamento, suas conquistas, suas enfermidades, e, acima de tudo, seu caráter como um cristão prático são de importância inestimável para a comunidade eclesiástica a qual ele está destinado a se tornar ministro. Nada que lhe diga respeito é sem importância. Se lhe fosse possível, estritamente falando, “viver para si mesmo” ou “morrer para si mesmo”, a situação seria outra. Mas isso não é possível. Seus defeitos e suas excelências, seus dons e graças, bem como os pontos fracos em seu caráter devem ter e terão seu efeito apropriado em cada coisa que tocar.
Vocês podem se espantar, então, que, empregados para conduzir a educação de candidatos a este alto e santo ofício, sentimo-nos postos sob uma responsabilidade não apenas solene, mas temível? Podem se espantar que, estando pouco mais que vocês avançados em nossa experiência relativa a este ofício, acalentamos a mais profunda preocupação a cada passo que damos? Podem se espantar que diariamente os exortemos que “tenham cuidado de si mesmos e da doutrina” e que não cessemos de lhes rogar e de orar para que tenham toda diligência em se apresentar a Deus e à Sua Igreja como servos idôneos e fiéis? Independentemente de toda obrigação oficial, se não sentíssemos e agíssemos dessa maneira, manifestaríamos insensibilidade aos interesses da Igreja e ao próprio bem-estar de vocês, coisas igualmente indesculpáveis e deploráveis.
É em consequência dessa profunda preocupação com o aprimoramento de cada espécie de habilitação ministerial que não apenas nos esforçamos para conduzir o curso regular de sua instrução, da maneira que achamos melhor adaptada a promover o grande propósito de todos os seus estudos, mas que também agarramos a oportunidade que a Preleção Geral, que fazemos como introdução a cada período escolar, nos dá de chamar sua atenção para uma série de assuntos que não são tratados no curso comum de nossa instrução.
Um assunto desses tomará nossa atenção na presente ocasião, isto é, a importância dos credos e confissões para a manutenção da unidade e pureza da Igreja visível.
Esse é um assunto que, embora pertença propriamente ao departamento de Governo da Igreja, sempre foi, por falta de tempo, omitido nas preleções geralmente dadas nessa divisão de nossos estudos. Sou induzido agora a chamar sua atenção para ele porque, como disse, pertence propriamente ao departamento de minha responsabilidade; porque é, em si, um assunto altamente interessante e importante; porque foi, por muitos anos no passado, e ainda é objeto de muita e severa crítica por parte dos latitudinários e hereges; e porque, embora abundantemente justificado pela razão, pela Escritura e pela experiência universal, os sentimentos espontâneos de muitos, especialmente sob o governo livre que felizmente desfrutamos, pegam em armas contra o que consideram e às vezes agradam-se de denominar o “rigor” excessivo e mesmo a “tirania” de se exigir subscrição aos Artigos de Fé.
É meu propósito primeiramente oferecer algumas observações sobre a utilidade e importância de credos escritos e depois afastar algumas das mais comuns e plausíveis objeções que têm sido levantadas contra eles pelos adversários.
I. Por um credo ou uma confissão de fé tenho em mente uma apresentação, em linguagem humana, daquelas grandes doutrinas que seus idealizadores creem que sejam ensinadas nas Sagradas Escrituras e que são apresentadas em ordem regular, com o propósito de verificar até onde aqueles que desejam se unir na comunhão da igreja realmente concordam quanto aos princípios fundamentais do cristianismo. Credos e confissões não reivindicam ser, em si mesmos, leis da casa de Cristo ou decretos legislativos, pelos quais qualquer conjunto de opiniões sejam constituídas verdades e que requeiram, por esse motivo, ser recebidas como verdades entre os membros da família de Cristo. Eles apenas professam ser sumários, extraídos das Escrituras, de algumas daquelas grandes doutrinas evangélicas que são ensinadas pelo próprio Cristo e que aqueles que fazem esse sumário, em cada caso particular, concorrem em considerar importantes e concordam em deles fazer o teste de sua união religiosa. Eles não têm nenhuma pretensão, ao formular esse sumário, de tornar verdade algo que antes não o era, ou de assim contrair uma obrigação de crer naquilo a que não estavam obrigados pela autoridade de Cristo a crer anteriormente. Mas eles simplesmente o consideram como uma lista de verdades principais que a Bíblia ensina e que, evidentemente, todos os homens devem crer, porque a Bíblia assim os ensina. São coisas que uma certa porção da igreja católica visível concorda em considerar como uma fórmula, por meio da qual podem conhecer e entender uns aos outros.
Dito isso, afirmo que a adoção desses credos é não apenas lícita e oportuna, mas também indispensavelmente necessária para a harmonia e pureza da Igreja visível. Para o estabelecimento dessa posição, peço sua atenção para as seguintes considerações.
1. Sem um Credo explicitamente adotado não é fácil ver como os ministros e membros de qualquer igreja particular, e mais especialmente de uma grande denominação de cristãos, podem manter a unidade entre si.
Se cada cristão fosse um mero indivíduo isolado, que investigasse, sentisse e agisse por si mesmo, sozinho, nenhum credo de formulação humana seria necessário para seu progresso no conhecimento, conforto ou santidade. Com a Bíblia em seu gabinete e com seus olhos abertos para ver as “coisas maravilhosas” que ela contém, ele teria tudo o que é necessário para sua edificação. Mas a situação é muito diferente. A igreja é uma sociedade; uma sociedade que, conquanto extensa, é “um corpo em Cristo”, e todos que a compõem são “membros uns dos outros”. Não se requer que essa sociedade seja meramente uma em nome ou reconheça uma união meramente teórica, mas também que cuidadosamente mantenha “a unidade do Espírito no vínculo da paz”. São exortados a “permanecer firmes em um único espírito, com uma mente”; são ordenados a “falar a mesma coisa” e ser “de um só acordo, de uma mente”. E essa “unidade de espírito” é tão essencial para o conforto e edificação daqueles que estão unidos na comunhão da igreja como o é para que haja conformidade com o mandamento do Mestre: “Como dois podem andar juntos a menos que concordem?” Pode um corpo de adoradores, composto de calvinistas, arminianos, pelagianos, arianos e socinianos, todos orar, pregar e ter comunhão íntima com proveito e conforto, cada um retendo os sentimentos, afeições e linguagem apropriados à sua denominação? Isso faria da casa de Deus uma infeliz Babel. Como podem aqueles que creem que o Senhor Jesus Cristo é Deus, igual ao Pai, adorando-o conformemente à sua crença, e aqueles que consideram esse culto como idolatria abominável; aqueles que cordialmente renunciam a toda dependência de suas próprias palavras ou mérito para justificação diante de Deus, confiando inteiramente em sua rica graça, “através da redenção que há em Cristo Jesus”, e aqueles que declaram que essa confiança é fanática e a justiça-própria humana, a única base de esperança; podem pessoas que cultivam esses sentimentos e afeições irreconciliavelmente opostos sobre os mais importantes de todos os assuntos se unirem com edificação nas mesmas orações, ouvirem de domingo a domingo as mesmas instruções, e se sentarem confortavelmente juntas na mesma mesa sacramental? Se sim, judeus e cristãos também poderiam adoram juntos no mesmo templo.
Eles ou serão perfeitamente indiferentes aos grandes assuntos sobre os quais estão assim divididos ou todas as suas relações produzirão discórdias e aflições. Essa assembleia discordante poderia falar sobre comunhão eclesiástica, mas que pudesse realmente desfrutar daquela comunhão que a Bíblia descreve como tão preciosa e que os piedosos tanto se deleitam em cultivar é impossível. É tão impossível quanto os justos terem comunhão com os injustos, ou a luz ter comunhão com as trevas, ou Cristo ter acordo com Belial.
Tendo essas coisas como autoevidentes, como, pergunto, alguma igreja pode se guardar dessa sinistra discórdia, dessa perpétua luta de sentimentos – se não de palavras e conduta – que necessariamente sucederá, quando for composta de tão heterogêneos elementos? Ou melhor, como uma igreja evitará a culpa de abrigar em seu seio e de admitir em sua comunhão as piores heresias que já desgraçaram os cristãos?
Não é o suficiente para alcançar esse fim que todos que sejam admitidos professem concordar em receber a Bíblia, pois muitos que se chamam cristãos e professam ter a Bíblia por seu guia têm opiniões e falam uma língua como estrangeiros e até mesmo como opositores das opiniões e línguas de muitos outros, que igualmente reivindicam ser cristãos e igualmente professam receber a Bíblia. Eles distam tanto como o oriente está para o ocidente.
Daqueles que concordam com essa profissão geral, a maior parte reconhece como de autoridade divina todo o cânon sagrado, como nós o recebemos, enquanto outros descartariam capítulos inteiros, e outros, um número de livros inteiros do volume da vontade revelada de Deus. Os ortodoxos defendem a inspiração plenária das Escrituras, enquanto alguns, que insistem ser cristãos, negam completamente a inspiração. Resumindo, há multidões que, professando crer na Bíblia e tê-la por seu guia, rejeitam cada doutrina fundamental que ela contém. Assim foi no princípio e assim é agora. Um apóstolo inspirado declara que alguns em sua época, que não apenas professavam crer nas Escrituras, mas mesmo diziam “pregar Cristo”, pregavam, na verdade, “outro evangelho”. Ele ordena que os seus destinatários considerassem esses mestres como “malditos” e lhes assegura que há algumas heresias tão profundas e radicais que devem ser consideradas “condenadas”. Certamente aqueles que defendem o verdadeiro evangelho não podem “andar juntos” na “comunhão da igreja” com aqueles que são “malditos” por pregarem “outro evangelho” e que defendem “heresias condenadas”, cujos defensores os discípulos de Cristo não podem sequer “receber em suas casas” ou “dar as boas-vindas”. Como, então, pergunto novamente, os membros de uma igreja cuidarão para que sejam, de acordo com o mandamento divino, “de uma só mente” e “de um só caminho”?
Eles poderiam requerer que todos que entram na sua comunhão professem crer na Bíblia. E mais, poderiam requerer que essa profissão fosse repetida diariamente. Ainda assim, essa igreja poderia ser corrompida e dividida por todo tipo de erro grosseiro. Essa profissão, é claro, não determina qualquer concordância; não é uma ligação de qualquer união real; não é um juramento de qualquer comunhão espiritual. Ela deixa tudo dentro do alcance do cristianismo nominal, perfeitamente indefinido, e tão exposto a discórdia total como antes.
Mas talvez seja proposto como um remédio mais eficiente que haja um entendimento privado, vigilantemente cultivado, para que nenhum pastor ou membro seja admitido, senão os que se souber, por conversa privada com eles, que substancialmente concordam com o corpo original, com respeito tanto à doutrina como à ordem. Dessa forma, alguns alegam, a discórdia pode ser banida e uma igreja, mantida pura e pacífica, sem um odioso arranjo de credos e confissões.
A essa proposta respondo, em primeiro lugar, que ela, para todos os intentos e propósitos, exibe um credo e lhe requer subscrição, ao tempo que insinua e professa o contrário. Ela faz uso de um teste religioso, na maneira mais rigorosa, sem ter a honestidade ou hombridade de admiti-lo. Pois que importa, quanto ao real espírito do procedimento, se o credo for reduzido à forma escrita ou estiver registrado apenas nas mentes dos membros da igreja e aplicado por eles como um corpo, se igualmente exclui os aspirantes que não sejam aprovados?
Mas a essa solução proposta, respondo, em segundo lugar, perguntando: o que é ter uma fé sadia? Conquanto seja explicitamente concordado pelos membros da igreja entre si mesmos, isso não pode ser confiado com segurança ao entendimento e memória de cada indivíduo que pertence ao corpo em questão. Acaso poderia a constituição civil de um Estado, em vez de confiada à escrita, ser abandonada às vagas e sempre inconstantes impressões de cidadãos individuais que vivem sob ela? Nessa constituição, qualquer um percebe que não pode haver nem certeza nem estabilidade. Dificilmente dois divulgadores de seus artigos concordariam perfeitamente, e as mesmas pessoas as exporiam diferentemente em tempos diferentes, à medida que seus interesses ou paixões fossem influenciados. Tão insensato e inseguro, para dizer o mínimo, seria deixar o instrumento da comunhão de uma igreja com uma base similar. Um credo oral, quando mais necessário como meio de aquietar agitações ou de excluir corrupções, seria considerado duvidoso e, é claro, inútil, por ter suas mais importantes provisões reivindicadas por cada parte. Em semelhante situação, se o credo fosse utilizado, seria muito mais provável que fosse pervertido em instrumento de opressão popular que empregado como meio de governo sóbrio e sadio.
A inferência, então, claramente é que nenhuma igreja pode esperar manter um caráter homogêneo; nenhuma igreja pode ser assegurada com a pureza ou paz, sequer por um ano; nenhuma igreja pode eficazmente se guardar contra os mais altos graus de corrupção e contenda sem algum teste da verdade, explicitamente concordado e adotado por ela, em sua condição eclesiástica; algo registrado, publicamente conhecido, capaz de se fazer referência quando necessário, que não apenas este ou aquele membro privado tenha supostamente recebido, mas ao qual a igreja como tal concordou em aderir, como um laço de união. Em outras palavras, uma igreja, a fim de manter a “unidade do Espírito no vínculo da paz e amor”, deve ter um credo – um credo escrito – o qual ela tenha formalmente reconhecido e a cuja conformidade suas ministrações estejam comprometidas. Enquanto esse teste for fielmente aplicado, ela não falhará em ser, em algum bom grau, unida e harmônica, mas quando nada do tipo for empregado, não vejo como ela possa esperar, sem um milagre, escapar de todos os males da discórdia e corrupção.
Continua…
Sobre o autor: Rev. Samuel Miller nasceu em Dover, Delaware, em 31 de outubro de 1769. Seu pai foi o Rev. John Miller (1722-1791). Miller frequentou a Universidade da Pennsylvania e se graduou em 1789. Obteve sua licença para pregar em 1791 e a Universidade da Pennsylvania concedeu-lhe o grau de doutor em divindade (D.D.), em 1804. De 1813 a 1849, serviu como professor de História Eclesiástica e Governo da Igreja no Seminário Teológico de Princeton e foi também integrante na fundação da instituição.
Por toda a sua vida, Miller foi um vigoroso participante em muitas das controvérsias que ocorreram no interior da Igreja Presbiteriana, incluindo a que resultou na divisão da Igreja na nova e velha escolas. Também foi considerado uma autoridade em muitos dos assuntos enfrentados pelos cristãos, especialmente os presbiterianos de seu tempo. Miller é, talvez, mais bem conhecido por seus escritos teológicos, polêmicos e biográficos, que publicou em vida, incluindo Um Breve Retrospecto do Século Dezoito (1803, 1805), Memória do Rev. John Rogers (1813), Cartas sobre o Unitarismo (1821), Um ensaio sobre o ofício dos presbíteros regentes (1831) [publicado no Brasil pela Editora Os Puritanos], Uma defesa da ordem primitiva e apostólica da igreja de Cristo (1840), Cartas de um pai para um filho na faculdade (1843) e Reflexões sobre a oração pública (1849). Também foi responsável pela publicação, em 1814, da memória e escritos de seu irmão mais velho, Edward Miller, um médico e professor proeminente em Nova Iorque, que morreu em 1812.
Miller morreu em Princeton, New Jersey, em 7 de janeiro de 1850, deixando uma esposa e um filho, que escreveu a biografia do pai, em dois volumes (Vida de Samuel Miller, D.D.), publicada em 1869.
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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos.