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Os “sonhos” de Deus jamais vão morrer – Bereianos


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É comum ouvirmos que o Senhor está comprometido em “restaurar” nossos sonhos e, ao mesmo tempo, que “os sonhos de Deus jamais vão morrer”. Dedicarei este post para ponderar sobre esse assunto. Inicio fornecendo alguns significados do vocábulo “sonho”, a relação entre sonho e revelação e a evidência bíblica de que somente os seres humanos sonham. Em 2012 eu já avaliei o uso da palavra “sonho” no cântico Arde Outra Vez, de Thalles Roberto.

Algumas acepções da palavra “sonho”

Como podemos entender o vocábulo “sonho”? Sem entrar na abordagem psicanalítica, simplesmente consultando um dicionário, lemos que sonho é “um conjunto de imagens, de pensamentos ou de fantasias que se apresentam à mente durante o sono”.[1] Esta acepção apresenta o sonho como experiência ocorrida enquanto dormimos, algo meramente fisiológico e neutro.

Um segundo modo de entender define sonho como uma “sequência de ideias soltas ou incoerentes às quais o espírito se entrega, devaneio, fantasia […]; plano ou desejo absurdo, sem fundamento”.[2] Aqui o sonho é um fluxo de impulsos desconexos e nem sempre edificantes. Um “sonhador”, por esta ótica, é um tolo, alguém que não segue um caminho responsável e racional. É sobre esse tipo de sonho que se pronuncia o sábio em Eclesiastes 5.3 e 7.

O sonho pode ser entendido ainda como um “desejo vivo, intenso e constante, anseio”.[3] Não se trata aqui de algo sem fundamento, mas de uma expectativa até legítima, um objetivo que almejamos alcançar e que é precedido, via de regra, por um plantio: “Estudo porque meu sonho é tornar-me um profissional qualificado”, ou “estou guardando dinheiro para realizar o sonho de adquirir um imóvel”.

Sonho e revelação

Na Escritura, com exceção do exemplo citado acima, extraído de Eclesiastes, o sonho, juntamente com a visão, é normalmente um meio de divina revelação: “Então, disse: Ouvi, agora, as minhas palavras; se entre vós há profeta, eu, o Senhor, em visão a ele, me faço conhecer ou falo com ele em sonhos” (Números 12.6 — grifo nosso). Esse padrão se repete no restante do AT, que se encerra com a empolgante promessa proferida por Joel. O Espírito seria derramado de tal forma sobre o povo que os “filhos” e “filhas” profetizariam, os “velhos” sonhariam e os “jovens” teriam “visões” (Jl 2.28-29). O que se diz nesta profecia é simples: Nos últimos dias Deus concederia a plenitude de revelação sobre a vida e obra de Jesus — o Senhor daria a seu povo a revelação do NT (At 2.16-20; Hb 1.1-2).

Somente os seres humanos sonham

Sempre que sonhos são mencionados na Escritura, estão relacionados a uma atividade humana. Mesmo que, no caso de revelação, Deus seja o agente que revela mediante o sonho, o ser humano é quem sonha — sempre. Não há uma ocasião sequer em que Deus seja descrito sonhando. Se do ponto de vista fisiológico o sonho é uma atividade que ocorre enquanto dormimos, Deus não dorme (Sl 121.4). Se do ponto de vista psicológico o sonho é um anseio da alma, Deus tem “pensamentos”, “vontade” e um “propósito” para conosco (Jr 29.11; Sl 40.8; Rm 8.28). No entanto, a Bíblia evita com cuidado o uso de qualquer palavra que possa ser interpretada como “sonho” da parte de Deus. O uso de uma linguagem bíblica exige que abandonemos o uso da palavra sonho referindo-se a Deus e passemos a utilizar os termos bíblicos pertinentes — “plano”, “propósito” ou “vontade”. O Senhor não trabalha com possibilidades e sim com o cumprimento de seu decreto soberano (Is 46.9-11).

A redenção e os nossos sonhos

Depois de conhecer alguns significados do vocábulo “sonho”, a relação entre sonho e revelação e a evidência bíblica de que somente os seres humanos sonham, temos de pensar sobre a implicação da redenção para os nossos sonhos.

A obra de Jesus consiste em restaurar nossos sonhos? Essa é uma questão pertinente porque temos ouvido exatamente isso. Uma música evangélica muito tocada convoca-nos à confiança em Deus afirmando:


       Não desista, não pare de lutar, não pare de adorar;
       Levanta teus olhos e vê,
       Deus está restaurando teus sonhos e a tua visão.[4]

Eis o vídeo:

O que isso significa?

O ponto é: Não sabemos ao certo. Faça o teste; converse com dez pessoas sobre esta estrofe e prepare-se para receber uma dezena de respostas que, ainda que diferentes, revelam a absorção de uma interessante mensagem, algo como “não estou derrotado; Deus acredita em mim”, ou “posso levantar a cabeça e tocar em frente”, ou ainda “a coisa está feia, mas, vai melhorar!” e coisas semelhantes. O apresentador Faustão (no vídeo lincado nas notas) entendeu que se trata de uma mensagem sobre fraternidade entre as diferentes religiões e pessoas! O fato é que, sem um construto doutrinário sólido, afirma-se uma palavra de autoajuda, uma bênção psicológica de autoafirmação.

Entenda-se isso não como crítica maldosa, mas como convite a uma avaliação teológica respeitosa da música em questão. Eu mesmo, dado à melancolia, já me peguei chorando ouvindo esta canção; ela é indubitavelmente boa para elevar nosso ânimo e nos empurrar para o enfrentamento de desafios.

Observe-se que são unidos “sonho” e “visão”, dois vocábulos da profecia de Joel 2.28-29. O problema é que, como expliquei anteriormente, o sentido da profecia de Joel não é “Deus vai restaurar seus sonhos e visão” e sim “cumpriu-se a antiga promessa; chegou a hora de Deus descortinar plenamente o evangelho, a totalidade da revelação do NT”.

O propósito de Deus e os nossos sonhos

E o que diz o evangelho aos nossos sonhos?

Primeiro, o evangelho mata os sonhos como “sequência de ideias soltas ou incoerentes às quais o espírito se entrega, devaneio, fantasia […]; plano ou desejo absurdo, sem fundamento”.[5] A obra de Cristo produz a derrocada de nossas inconsistências psicológicas, existenciais, morais e volitivas. O processo que o Espírito Santo usa para produzir isso é denominado santidade prática. Um exemplo bíblico disso é encontrado no pedido de Tiago e João, registrado em Marcos 10.35-40. Ambos queriam desfrutar da honra de assentar-se à direita e esquerda do Redentor, por ocasião da manifestação definitiva de seu reino (reconheçamos que era um belo sonho!). Jesus afirmou-lhes que não era possível prometer-lhes isso e terminou por confirmá-los na comunhão de seu sofrimento. Deus nos ajuda a compreender o quão tolas e até mesmo perigosas são nossas fantasias e coloca-nos sob o seu governo, destruindo tudo aquilo que é danoso ao nosso bem-estar espiritual. Nesses termos, Deus não restaura nossos sonhos e sim os extingue.

Segundo, quanto aos sonhos como “desejo vivo, intenso e constante, anseio”, Deus os alinha ao seu propósito. Isso implica em profunda transformação. Certamente Pedro, como pescador, tinha suas aspirações. É possível que Paulo tivesse sonhos relacionados à sua carreira no judaísmo como fariseu respeitável e, pensando na história da igreja, lemos sobre um jovem, João Calvino, que viajava com destino a Estrasburgo, tencionando dedicar-se aos estudos e que foi forçado pela Providência a comprometer-se com o serviço divino em Genebra, até o fim de seus dias. E esses são apenas poucos exemplos. Uma olhada ainda que rápida na galeria dos crentes listados em Hebreus 11 ou nos anais da história evangélica revela um dado comum: Deus não “restaurou” os sonhos daqueles homens, mas alinhou-os ao seu querer.

Sendo assim, o que o evangelho faz? Sem dúvida, com base nas promessas de Deus, podemos dizer que o Senhor nos anima, nos levanta do pó, nos motiva a prosseguir com uma vida produtiva na qual constem projetos e boas realizações (Sl 113.7; cf. Sl 1.3, 37.3-6). Entendamos, porém, que o evangelho diz a cada um de nossos sonhos: Submeta-se a Deus ou morra, ou, nas palavras de Jesus, “[…] se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará” (Lc 9.23-24; cf. Pv 16.1).

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Notas:
[1] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. (Ed.). Sonho. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva Ltda., 2009. CD-ROM).
[2] HOUAISS, op. cit., loc. cit.
[3] Ibid., loc. cit.
[4] FERBER, Ludmila. Recebe a Cura. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aUeOLYonanY>. Acesso em: 21 mai. 2015. Grifo nosso.
[5] HOUAISS, op. cit., loc. cit.

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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos