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Quão bíblico é o Molinismo? (Parte 3) – Bereianos


Nesta série involuntariamente e lamentavelmente esporádica, eu estive considerando a pergunta: O quanto será que a Bíblia apoia o Molinismo? No primeiro post eu argumentei que a Bíblia afirma (1) a providência divina abrangente e (2) o conhecimento de Deus acerca dos contrafactuais de liberdade da criatura (isto é, o conhecimento acerca do que qualquer agente criado irá livremente fazer se colocado em determinadas circunstâncias), mas o Molinismo não possui nenhuma vantagem sobre o Agostinianismo no que diz respeito a (1) e (2). Eu concluí com a seguinte afirmação:

“Se queremos mostrar que o Molinismo possui melhor suporte bíblico que o Agostinianismo (ou vice-versa), então precisamos encontrar alguma proposição p que é afirmada pelo Molinismo e negada pelo Agostinianismo (ou vice-versa) de forma que p goza de apoio bíblico positivo (isto é, existem textos bíblicos que, segundo a interpretação mais natural e defensável, e sem implorar questões filosóficas, asseguram ou implicam p).


No segundo post eu examinei um candidato para a proposição p: a proposição de que a liberdade moral é incompatível com o determinismo (uma coisa que os molinistas invariavelmente afirmam, mas que os agostinianos normalmente negam). Cheguei à conclusão de que a Bíblia não oferece suporte para o incompatibilismo. Neste post eu vou considerar um segundo candidato a proposição p: a proposição de que Deus deseja que todos sejam salvos.



A BÍBLIA E A VONTADE SALVÍFICA DE DEUS


Alguns molinistas tem argumentado que a Bíblia ensina que Deus deseja a salvação de todos e que o Molinismo faz melhor justiça a este ensino do que seu principal rival, o Agostinianismo. Kenneth Keathley, por exemplo, em seu livro Salvation and Sovereignty, aponta três textos bíblicos em particular – João 3:16, 1 Timóteo 2:3-4 e 2 Pedro 3:9 – como exemplos de passagens que ensinariam a vontade salvífica e universal de Deus. Keathley então começa a argumentar que o Molinismo faz mais justiça a este ensinamento bíblico na medida em que afirma tal desejo divino e ao mesmo tempo dá uma melhor explicação sobre o porquê esse desejo não se realiza. (Keathley assume, como faço aqui, que o universalismo é falso).


Vamos começar examinando se o desejo de Deus para a salvação universal é realmente um ponto afirmado de forma clara e explícita nas Escrituras. João 3:16 deve ser o versículo mais conhecido na Bíblia:

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” [ACF]


Observe cuidadosamente o que o texto diz e o que ele não diz. O texto fala que o amor de Deus para “o mundo” era tal que Deus enviou o seu Filho unigênito, com o objetivo de que todo aquele que nele crê (no Filho) tenha a vida eterna. O texto não diz que Deus deseja que cada pessoa creia e que, assim, tenha a vida eterna. Alguém poderia pensar que essa é uma implicação do texto, mas ela não é indicada explicitamente. Ela se torna uma implicação apenas se existem determinados pressupostos como, por exemplo, o pressuposto de que “o mundo” refira-se a todas as pessoas, e que o amor de Deus para X implica que Deus deseja que X tenha a vida eterna. Meu propósito aqui não é questionar essas suposições (embora eu vá, pelo menos, destacar que João em nenhum lugar de seu evangelho ou de suas epístolas usa
kosmos de uma maneira que implica “todas as pessoas”). Pelo contrário, meu objetivo é simplesmente observar que a ideia de que Deus deseja a salvação universal, mesmo que seja verdade, não pode ser extraída diretamente de João 3:16.


Considere agora 1 Timóteo 2:3,4

Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.” [ACF]

Este parece um pouco mais claro até você aprender que a palavra grega para ‘todos’ às vezes pode levar o sentido de todos sem distinção (em português: “todos os tipos”) ao invés de todos sem exceção. Qual o sentido que melhor se ajusta nesse caso? Bem, isso é uma questão de debate entre os comentaristas. Dado o contexto imediato (considerando como Paulo usa ‘todos’ nos versos 1-2), é razoável pensar que o objetivo de Paulo aqui não é dizer que Deus deseja que cada pessoa seja salva, mas sim que Deus deseja que as pessoas de todas as faixas – tanto aquelas de alto status como as da plebe como nós – sejam salvas. De acordo com o evangelho da graça, Deus não privilegia uma classe de pessoas em detrimento de outra quando se trata de salvação. Como Calvino afirmou: “Com isso, realmente outra não é sua intenção, senão dizer que Deus não fechou o caminho da salvação a nenhuma ordem de homens, senão que, antes, de tal modo derramou sua misericórdia, que não quer que algum dentre eles seja dela carente” (Institutas, 3.24.16) . Ainda que alguém não esteja completamente convencido dessa leitura do texto, se deve, pelo menos, admitir que é linguisticamente plausível e que faz sentido no contexto imediato.


Finalmente, vamos considerar 2 Pedro 3:9:

O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; porém é longânimo para convosco, não querendo que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se.” [AR]

Mais uma vez, em uma leitura superficial isto parece ser um gol olímpico dos molinistas: Deus deseja que todos se arrependam de modo que ninguém venha a perecer. No entanto, assim como o texto de 1 Timóteo 2, a declaração de Pedro deve ser interpretada no seu contexto. A abrangência de “ninguém” e de “todos” é qualificada pelo público a quem Pedro está escrevendo: o “convosco” no início do versículo. A segunda metade deve ser entendida assim: “não querendo que nenhum de vocês se perca, senão que todos vocês venham a arrepender-se”.


Agora, novamente, pode muito bem ser possível inferir uma reivindicação mais ampla sobre o desejo de Deus para a salvação universal, ao trazer consigo suposições teológicas complementares derivadas de outros textos e ensinamentos bíblicos. Meu objetivo aqui é apenas enfatizar que não há nenhuma afirmação clara e explícita de um desejo salvífico universal em 2 Pedro 3:9.


Para ser mais claro: eu não quero argumentar contra a ideia de que Deus deseja que todos sejam salvos. Acredito firmemente que Ele queira, mas num sentido devidamente qualificado. Estou simplesmente observando que não existem textos bíblicos que afirmam explicitamente essa ideia ou que diretamente a implicam. É uma inferência (e eu acho que garantida) a partir de uma série de diferentes textos interpretados em termos da abrangente linha de história bíblica .


Em todo caso, pode-se verificar que essa questão é em grande parte irrelevante quando se trata de avaliar o Molinismo. Porque, como irei argumentar agora, mesmo que venhamos a admitir que a Bíblia de fato ensina um desejo salvífico universal da parte de Deus, está longe de ser claro que o Molinismo faça mais justiça a esse ensino que o Agostinianismo.


SERÁ QUE O MOLINISMO TEM VANTAGEM SOBRE O AGOSTINIANISMO?


Vamos supor, então, que a Bíblia ensine que Deus deseja que todos sejam salvos. Será que o Molinismo acomoda melhor esse ensino que o Agostinianismo? Os molinistas também acreditam que, ao contrário do que Deus deseja, nem todos serão salvos. Logo, os molinistas devem conciliar estas duas reivindicações:

A: Deus quer que todo o mundo seja salvo.

B: Nem todo mundo será salvo.

Existem basicamente duas opções aqui para o molinista. A primeira é dizer que nem todo mundo é salvo porque a garantia de salvação universal não estava dentro do poder de Deus. Precisamos lembrar, porém, que os molinistas desejam afirmar a providência divina abrangente, segundo a qual tudo no mundo ocorre de acordo com um eterno decreto divino. Assim, a partir de uma perspectiva molinista, dizer que Deus não poderia garantir que todos fossem salvos é equivalente a dizer que Deus não poderia ter eternamente decretado a salvação de todos, o que significa (em termos molinistas) que Deus não poderia tornar real um possível mundo possível onde todos fossem salvos (ou, sendo mais preciso, que Deus não poderia tornar real um mundo onde todas as pessoas que existem naquele mundo fossem também salvas nele).


Lembre-se que no esquema molinista, Deus não pode tornar real qualquer mundo possível. A escolha de qual mundo irá se tornar real é limitada pelos contrafactuais de liberdade da criatura (uma liberdade não-determinista). Há um subconjunto de mundos possíveis (às vezes chamados de mundos “viáveis”) em que Deus é capaz de tornar real com base no seu conhecimento médio. Assim, de acordo com esta primeira opção, o molinista estaria dizendo que apesar de existirem possíveis mundos onde todos são salvos, não há mundos factualizáveis onde todos são salvos (presumivelmente, Deus queria que houvessem alguns desses mundos, mas isso estava além de Seu controle. Deus só podia jogar com as cartas que tinha, e a mão que deram a Ele não foi a melhor possível).


Logo, nesta primeira forma de conciliar A e B, Deus não poderia satisfazer seu desejo de salvação universal simplesmente porque não havia mundos factualizáveis onde a salvação universal de fato ocorresse. A dificuldade para o molinista, no entanto, é que não existe apoio bíblico positivo para tal afirmação. Além disso, não há boas razões teológicas ou filosóficas para crer em tal afirmação, a menos que você já esteja comprometido com o Molinismo. O melhor que o molinista pode fazer aqui é insistir que “pelo que sabemos” não existem mundos factualizáveis onde todos são salvos; em outras palavras, que nada do que conhecemos tem o poder de descartar isso. Mas, claramente, isso não é bom o suficiente para estabelecer os credenciais bíblicos do Molinismo. O que precisamos aqui é de alguma razão para achar que o Molinismo se ajusta melhor aos dados bíblicos que seus concorrentes.


A segunda maneira do molinista conciliar A e B é propor que Deus poderia ter tornado real um mundo onde todos são salvos, mas que ele tinha uma razão primordial para não fazê-lo. Os molinistas podem oferecer (e têm oferecido) várias sugestões quanto a qual seria esse motivo:

  • Talvez os mundos factualizáveis onde a salvação universal ocorresse fossem mundos muito escassamente povoados e, portanto, apenas um número relativamente pequeno de pessoas iria desfrutar das bênçãos da salvação.
  • Na verdade, talvez a maior preocupação de Deus não é concretizar um mundo onde todos são salvos, mas sim concretizar um mundo onde existe um equilíbrio global otimizado entre salvos e não salvos (como o William Lane Craig propõe aqui).
  • Uma sugestão intimamente relacionada: talvez a maior preocupação de Deus seja concretizar um mundo onde a felicidade humana líquida (o que levaria em conta tanto a felicidade total dos salvos e a infelicidade total dos perdidos) é maximizada.
  • Como alternativa, talvez os mundos factualizáveis onde a salvação universal ocorre também viriam a ser mundos onde há terríveis males morais que ultrapassam o bem da salvação universal (ou, mais precisamente, superam o bem da salvação de todos os seres humanos caídos nesse mundo).

No final, realmente não importa o motivo específico que o molinista ofereça aqui, porque a lógica subjacente é a mesmo: sendo tudo igual, Deus iria tornar real um mundo onde todos são salvos, mas todo o resto já não seria igual.


Uma vez que o molinista faz essa jogada, no entanto, o jogo para, pois o agostiniano pode e, de fato, faz a mesma jogada. Os agostinianos irão afirmar que Deus poderia ter decretado um mundo onde todos são salvos, mas Deus tinha uma boa razão primordial para não fazê-lo. Ele pode até mesmo concordar que com todo o resto sendo igual, Deus teria decretado a salvação universal, mas tudo não continuaria a mesma coisa: Deus tinha outras considerações (mais elevadas). Em toda a probabilidade o agostiniano irá apontar para o desejo de Deus de expressar sua liberdade soberana na eleição e glorificar a si mesmo através da exibição tanto de sua misericórdia (na salvação imerecida de alguns seres humanos caídos) e da sua justiça (na justa condenação de outros seres humanos caídos). Na verdade, o agostiniano pode citar Romanos 9:14-24 como apoio bíblico positivo para a sua posição, que é muito mais do que o molinista pode fazer em relação às especulações sobre as razões de Deus (voltarei a esse ponto depois).


Mais uma vez vemos que o Molinismo está, na melhor das hipóteses, empatado com o Agostinianismo em relação aos dados bíblicos. Mesmo admitindo que a Bíblia ensine o desejo de salvação universal da parte de Deus, o Molinismo não faz mais justiça que o Agostinianismo em relação a esse ensino (isto é, não é melhor em conciliar esse ensino com o ensino bíblico adicional  de que alguns não serão salvos).


Na próxima parte desta série, irei considerar um outro candidato para a proposição p, sendo mais específico, a proposição de que Deus não é “o autor do pecado”.

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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos

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