Decepções, infelizmente, são um elemento comum na experiência humana. Na verdade, faz parte de nossas vidas desde a primeira infância. Esperamos algo ou acreditamos de todo coração que determinada pessoa vai nos dar o que queremos (e, a essa altura, já cremos que é o que precisamos) e essa pessoa, por qualquer razão, não atende nossas expectativas. Nossa reação com frequência é de decepção. “Como pode alguém em quem confiei se negar a prover algo que preciso? Essa pessoa não deve me amar”.
Um de meus filhos cortou o supercílio em uma brincadeira aos 3 ou 4 anos. Levei-o ao hospital e, após exame, a médica de plantão concluiu que precisava de sutura. Como convencer uma criança que o que iríamos fazer era para seu bem? No final, tivemos de segurá-lo na maca enquanto a médica realizava o procedimento em meio a gritos dele pedindo ajuda e prometendo que seria bonzinho… A cena ainda “aperta” meu coração.
Eu sei que não havia no momento outra alternativa, sei que dar aqueles pontos era do melhor interesse de meu filho; também sei que não realizar o procedimento seria irresponsável. Ao mesmo tempo, eu fico imaginando uma cena em que, enquanto eu segurava meu filho e ele chorava por socorro, alguém chegasse ao ouvido dele e dissesse: “Acho que seu pai não o ama… Se amasse você, não faria você sofrer. Se eu fosse seu pai, não deixaria você sofrer…”. Essas palavras soariam muito verdadeiras aos ouvidos de meu filho naquele momento. Dessa forma, uma experiência de decepção (como meu pai não me protege?) somada a uma mentira bem colocada poderia levá-lo a se afastar desse pai “cruel”.
O mais impressionante é que é exatamente assim que ocorre na vida de muitos cristãos. Ao passarmos por decepções, ficamos como que “ressentidos” com Deus, que, em uma perspectiva utilitária, deveria nos proteger e livrar de toda dor. A promessa de Deus é nosso bem maior e não nosso conforto. Ele promete andar conosco no vale de trevas e morte (Salmos 23.4), e não aplainar esse vale e afastar as trevas e a morte – pelo menos por enquanto (Isaías 40.4-5)!
A promessa de Deus é nosso bem maior e não nosso conforto.
É nas palavras reveladas a Jeremias que vemos uma descrição desse dilema e a direção de Deus em como lidar com essas experiências de decepção. Leia o capítulo 3 de Lamentações. Nos versículos 1 a 20, o profeta apresenta a Deus sua perspectiva de que Deus tem se levantado contra ele! Veja algumas das expressões usadas por ele:
“Eu sou o homem que viu a aflição causada pela vara do furor de Deus. Fez envelhecer a minha carne e a minha pele, e despedaçou os meus ossos. Mesmo quando clamo e grito, ele fecha os ouvidos à minha oração. Foi para mim como um urso à espreita, como um leão pronto para atacar. Desviou os meus caminhos e me fez em pedaços; depois me abandonou. Entesou o seu arco e me pôs como alvo de suas flechas. Fartou-me de amarguras, e me saciou de absinto. Minha alma continuamente se lembra disso e se abate dentro de mim.”
As expressões indicam o que hoje chamaríamos de estado depressivo. Não apenas ele afirma estar em profunda angústia, mas também reconhece que foi Deus quem o colocou nessa situação! Há um lado bom nisso: ele reconhece a existência de Deus e a sua soberania sobre os eventos de sua vida. Por outro lado, até aqui ele parece estar acusando Deus.
No entanto, a partir do verso 21, ele muda o rumo de seus lamentos. Apesar de reconhecer que, sim, o Senhor permitiu que ele passasse por tudo isso, ele ainda afirma a bondade de Deus. Repare na mudança de tom dos próximos versos:
“Quero trazer à memória o que pode me dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. ‘A minha porção é o Senhor’, diz a minha alma; ‘portanto, esperarei nele.’ O Senhor é bom para os que esperam nele, para aqueles que o buscam. Bom é aguardar a salvação do Senhor, e isso, em silêncio.”
Repare, no verso 21, que ele não se lembra apenas do que pode lhe dar esperança, como se esquecesse de seu sofrimento. Ele também lembra do que pode lhe dar esperança. Pode parecer uma distinção ínfima, mas negar o sofrimento não é fé, é alienação. Fé é crer na bondade do Senhor mesmo em meio à provação.
Negar o sofrimento não é fé, é alienação. Fé é crer na bondade do Senhor mesmo em meio à provação.
Jeremias destaca que aquilo que pode lhe trazer esperança se resume ao amor e à misericórdia de Deus. O amor nos garante que tudo aquilo que o Senhor nos traz é para nosso bem, ainda que no momento possa ser desagradável. Com isso, não me refiro apenas aos eventos que Deus usa para nos disciplinar ou mesmo como consequência de nossa desobediência, mas também às tragédias que não foram provocadas por nosso pecado, mas que fazem parte da manifestação do amor de Deus pela humanidade. Jesus aponta esse aspecto em João 9.1-5. Ali, ao ser perguntado pelos discípulos por que aquele homem sofria a tragédia da cegueira, eles mostram que acreditavam que era fruto de pecado dos pais ou dele. Jesus no entanto lhes diz: “Nem ele pecou, nem os pais dele; mas isso aconteceu para que nele se manifestem as obras de Deus”. Ou seja, existem tragédias que acontecem unicamente para mostrar a glória de Deus. Dessa forma, nem sempre há uma relação causal entre pecado e sofrimento.
O segundo elemento é a misericórdia de Deus que se renova a cada manhã. Misericórdia trata da questão de nosso pecado. Por termos um coração rebelde ao Senhor, somos merecedores de sua ira. Assim, tudo o que Jeremias descreve nos versos 1 a 20 acima são expressões de justiça de Deus contra nosso pecado. Davi aborda esse conceito em Salmos 51.4 ao afirmar: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau aos teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar”. Misericórdia é essa característica de Deus de reter sua ira e, finalmente, de lançá-la sobre seu próprio filho na cruz (1Pedro 2.4).
Minha oração por mim e por você, meu irmão, meu amigo, é que, em meio às nossas decepções, possamos trazer à memória o amor e a misericórdia de Deus. Estas são as coisas que podem nos dar esperança!
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.