Há vários anos tivemos no Brasil dois eventos que revelam muito da natureza humana. Em 2004, um juiz de direito entrou com um processo contra um porteiro de seu condomínio por este dirigir-se a ele como “você” e “cara” e não como “senhor” e “doutor”. O evento ocorreu após uma discussão típica de condomínio, tratando de um vazamento no apartamento do magistrado. Na época, ele pedia uma indenização por danos morais de cem salários-mínimos. O mais surpreendente é que na primeira instância o juiz teve ganho de causa[1].
Em outro evento, também revelador, um juiz foi parado em uma blitz dirigindo sem carteira um veículo sem placa e sem documentação. De acordo com a legislação, o veículo teria de ser apreendido e o condutor multado. No entanto, o juiz dirigiu-se ao comandante da operação e, explicando que era juiz, pediu para ser liberado. A agente que o havia autuado manteve sua posição. Na discussão a seguir, o juiz lhe deu ordem de prisão por desacato e a agente disse: “É juiz, mas não é Deus”. Mais tarde, a agente entrou com um processo contra o juiz por se sentir ofendida durante o exercício de sua função. No processo decorrente, a justiça considerou que a vítima era o juiz e condenou a agente a pagar uma indenização de cinco mil reais. A agente foi eventualmente isentada de pagar a indenização após seis anos da condenação[2].
Em ambos os casos, ainda que seja levada em consideração a posição e a dignidade da função dos magistrados, os dois não estavam no exercício da função, ou seja, a função e mesmo a pessoa dos magistrados não foi ofendida. É bem possível que tanto o porteiro como a agente tenham sido debochados ou desrespeitosos no modo de falar, mas como ficou evidenciado em ambos os casos após um longo processo jurídico, deboche não é crime, ou seja: nenhuma lei foi quebrada. O que foi ferido foi a sensação de identidade desses dois senhores. Para eles, pelo fato de serem juízes devidamente concursados, sua identidade está vinculada à sua pessoa e não à função ou cargo que exerciam.
Jesus demonstra com clareza no evento do lava-pés que, justamente por saber quem era e por saber de onde vinha, podia abrir mão da glória que lhe era legitimamente devida.
Temos visto nos últimos artigos (“Reino de cabeça pra baixo”, “A quem servimos” e “Como servimos”) vários aspectos sobre serviço cristão. Jesus demonstra com clareza no evento do lava-pés que, justamente por saber quem era e por saber de onde vinha, podia abrir mão da glória que lhe era legitimamente devida. Como seguidores do Mestre, somos chamados a servir sem que isso fira em qualquer medida nossa identidade. Hoje gostaria de examinar com vocês a conhecida passagem de Filipenses 2.5-8:
“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!”
A primeira observação é a exortação de Paulo para que copiemos a mesma atitude de Cristo. A palavra para “atitude” poderia ser traduzida por “mente” ou “sentimento”. No entanto, o sentido do verso permitiria também traduzir por “perspectiva” ou “entendimento”. Ter a mesma atitude de Jesus refere-se ao modo como encaramos a vida, nossas prioridades e mesmo como encaramos nosso papel nos vários relacionamentos em que estamos envolvidos. Paulo está nos chamando a copiar a própria vida de Cristo.
A partir do verso 6, entramos em um debate que dividiu a cristandade por anos. O dilema é se Jesus, tendo se esvaziado, deixou de alguma forma sua natureza divina. A melhor forma de entender essa questão é lembrar que há duas palavras que podem ser traduzidas como “forma” nessa passagem. A primeira é morfe e a outra é esquema. Morfe, raiz de palavras em português como transformar, deve ser entendida como “forma essencial”. A palavra esquema, muito usada no português, deve ser entendida como “condição”. A partir desse entendimento podemos afirmar que Jesus manteve sua essência divina, mas abriu mão das condições de glória em que sempre existiu. Em resumo, ele não perdeu nada de sua natureza divina e habitou plenamente na condição humana.
Usando essa compreensão, o restante do texto se torna claro e nos traz inúmeras aplicações como discípulos de Cristo. No verso 6, lemos que, apesar de ser essencialmente divino, ele não considerou que precisava manter as condições de glória de sua divindade. Ou seja, a mudança das condições não afetava sua identidade. Como cristãos, nossa identidade não é afetada por existir em condições diferentes ou que aparentemente até neguem minha identidade. Por exemplo, se não sou tratado com a dignidade que todo filho de Deus merece, não preciso me defender ou contra-atacar. Condições não determinam quem somos.
Como cristãos, nossa identidade não é afetada por existir em condições diferentes ou que aparentemente até neguem minha identidade.
Acredito que, quanto mais refletirmos nesse exemplo de Cristo, mas livres seremos para servir, mesmo quando não reconhecidos. Nosso serviço é manifestação de nossa identidade, não da forma como sou ou serei tratado. Minha oração é que tanto eu como você, meu irmão e minha irmã, tenhamos tanta clareza de quem somos em Cristo, que ao sermos tratados neste mundo como servos, nossa reação seja graciosa.
Notas
- Kika Castro, “O dia em que o STF negou pedido de um juiz que exigia ser chamado de ‘doutor’”, Pragmatismo, 29 jul. 2016. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/07/o-dia-em-que-o-stf-negou-pedido-de-um-juiz-que-exigia-ser-chamado-de-doutor.html.
- “Agente que afirmou que ‘juiz não era Deus’ reverte sentença seis anos após condenação”, Meia Hora de Notícias, 23 set. 2020. Disponível em: https://www.meiahora.com.br/geral/2020/09/5994379-agente-que-afirmou-que–juiz-nao-era-deus–reverte-sentenca-seis-anos-apos-condenacao.html
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutor em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos, uma neta e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.