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A melhor forma de governo – Bereianos




No último capítulo indicamos as principais funções do estado segundo a concepção calvinista. Neste capítulo demonstraremos que tipo de estado o calvinista poderia considerar ideal – o que é ordenado por Deus – para consumar as suas funções. Se o mundo não tivesse caído em pecado não haveria a possibilidade da incerteza quanto à forma ideal de estado. Este seria um estado mundial, um império mundial: o Reino de Deus. A forma de governo seria monárquica, com Adão à cabeça do império. Na nova terra haverá outras vezes um império mundial sob o segundo Adão – como rei. Mas nesta terra de pecado não poderá se estabelecer o estado mundial disposto por Deus. Para minimizar de algum modo a corrupção do homem, na torre de Babel, Deus dividiu os povos da terra em diferentes nações e línguas. Todavia, vários foram os intentos para conseguir um império mundial. O Anticristo com o recurso da força tratará de estabelecer um império; mas, este império será destruído por Cristo. Pode se dizer que Calvino favoreceria a formação de estados não tão extensos e poderosos, para que assim pudesse eliminar o perigo inerente em toda concentração excessiva de poder governamental. 

O calvinismo, consequentemente, não favorece a formação de um estado único, ou de um império mundial, nesta terra de pecado; e muito menos se manifesta a favor de um determinado tipo de governo. Alguns chegam a supor que o calvinismo pretende instaurar novamente a teocracia mosaica. Então, com vasta frequência nos descrevem Calvino como tratando de fazer tal coisa em Genebra. Todavia, a realidade é bem outra: Calvino em repetidas ocasiões afirmou que a teocracia mosaica estava destinada, exclusivamente, para o povo israelita. Muitas de suas leis foram promulgadas à luz de algumas circunstâncias distintas às de nosso tempo. Por seus desígnios providenciais, Deus achou por bem, após a queda, que o império mundial se fragmentasse em muitos estados, assim, também permitiu que fosse fracionada a autoridade governamental. Deus pode exercer o seu senhorio não somente através de um homem (monarquia), como também, através de uns poucos (aristocracia), e inclusive através de muitos, ou de todos (democracia). Deus não somente pode fazê-lo, como que na realidade o faz. A Bíblia afirma que “não há autoridade que não proceda de Deus”, pois os poderes humanos foram ordenados por Deus.[1] Se Deus exerce o seu senhorio através de diferentes tipos de governo, a pergunta que concerne à forma de governo se reveste de um distinto caráter prático, e poderia se formular assim: que forma será mais funcional quanto aos fins de governo? A resposta não será a mesma em todos os casos. Em alguns países certa forma de governo será melhor, enquanto que em outros a mesma resultaria ineficaz. Nos Estados Unidos da América a forma de governo mais apropriada é a democrática. Mas em outras terras, onde o nível cultural e moral não é tão alto, a forma democrática continuamente se veria perturbada por revoluções. Num país como a China é questionável se uma democracia genuína poderia ser realmente eficaz. Igualmente, no curso da história de uma nação poderá ocorrer num período durante o qual o governo democrático resultará eficaz; mas, em outros, ao declinar a moral e desaparecer o espírito cívico dos cidadãos, uma forma ditatorial ou monárquica virá a ser a mais indicada para estabelecer a ordem e evitar o caos.


Teoricamente podemos encontrar argumentos tanto a favor, como contra as formas de governo mais conhecidas. Na monarquia o poder está nas mãos de uma pessoa; isto favorece a unidade e a eficácia da administração. Mas existe o perigo de que a pessoa investida com tão alta autoridade possa fazer um mau uso em benefício próprio, ou de seus favoritos. Na democracia o poder está nas mãos do povo; isto é uma grande salvaguarda contra a opressão, ao mesmo tempo que politicamente favorece a todos e cria um sentido de responsabilidade. Os inconvenientes são de que a ação é lenta, e de que o partidarismo político chegue a converter-se no fator dominante. Na aristocracia as mentes mais esclarecidas são as que, em teoria, hão de governar; mas, também aqui existe o perigo de que os interesses de uns poucos cheguem a predominar e deste modo gerem distinções e conflito de classes.


A melhor garantia de que um governo resultará eficaz, mais que em sua forma (monárquica, aristocrática ou democrática) dependerá do calibre moral e espiritual do povo. Com boa gente qualquer forma de governo irá bem; mas, com pessoas absolutamente depravadas nenhuma forma terá benefício. Talvez seja a forma monárquica a que terá maior êxito onde se requer um governo autoritário; enquanto que a democracia resultará mais idônea onde o nível moral e cultural for mais alto. Uma coisa é certa: a base moral e espiritual de um povo é fator condicionante do êxito de uma forma de governo. E sobre isto o calvinista, com o seu princípio fundamental da soberania de Deus e a responsabilidade humana, insiste uma e outra vez.


Vale a pena fazer notar aqui que nas Institutas, Calvino favorece tanto um tipo de governo aristocrático como uma fusão de aristocracia e democracia para os países europeus. Baseando-se, para isto, no fato de que os reis raramente governam conforme a justiça e a retidão. Além do mais, Calvino argumentava, os reis não estão sempre dotados daquela sabedoria e discernimento que lhes permita descobrir o que é melhor para o povo. Em suas últimas obras, os comentários, publicados entre 1550 a 1560 – e em especial em Deuteronômio e Samuel – Calvino faz afirmações mui vigorosas em favor de um tipo de governo democrático.


O ESTADO NUM MUNDO SEM PECADO E HOJE


Esta é uma pergunta sumamente importante e sobre a qual se suscita diferenças bem delimitadas. A pergunta não pode ser respondida com um simples não ou sim. Tudo depende do que se entende pelo termo cristão. No sentido estrito pode-se dizer que o estado não é uma instituição cristã. O estado é uma instituição da graça comum de Deus, por meio da qual Deus freia a influência do pecado e promove uma ordem moral geral. Esta instituição existe não somente onde há uma comunidade cristã, como também existe, e se faz presente, em tempos e lugares além do cristianismo; entre muçulmanos, budistas, zoroastristas, bem como na antiga Grécia e Roma. Mas ainda assim, a Bíblia nos diz que todos estes governos foram instituídos por Deus. Consequentemente o estado não é uma instituição claramente cristã.


Existe outro sentido no qual o termo cristão foi aplicado ao estado. Quando um estado se encontra impregnado por um espírito cristão e na administração dos assuntos civis, posto em prática princípios cristãos, então, refere-se a ele como sendo um estado cristão. Se isto é o que se entende por um estado cristão, então, todos os estados, segundo a consciência do calvinismo, deveriam ser cristãos. Por ser Deus o grande soberano do universo, resulta evidente que a sua Palavra há de ser a norma e lei sobre todos os confins da terra. O estado de modo algum deveria ser ateu, ou negar a soberania e lei de Deus, tal como pretende fazer na União Soviética. Muito menos ser neutro, como advogam os filiados do liberalismo político.[2] Por ser Deus o supremo legislador e senhor da criação ninguém pode sustentar que a religião seja assunto meramente privado e que deve divorciar-se de qualquer esfera da sociedade – seja a política, ou outra qualquer -. Deus governa sobre tudo! O estado deve se submeter a suas ordenanças, do mesmo modo que a Igreja e o indivíduo. O calvinismo cujo princípio fundamental é de que Deus é soberano em todas as esferas da vida, enfaticamente insiste que Deus também deve ser reconhecido na esfera política.


Resulta certo, por outra parte, que Deus deu o estado da jurisdição própria. O estado não realizar a obra da Igreja. Pois não é o instrumento ordenado por deus para a propagação da religião. Todavia, em assuntos que estão dentro de sua própria esfera, o estado está ligado à Palavra de Deus – tal como possa estar a Igreja e o indivíduo. Um estado é cristão quando toma a Palavra de Deus como guia, e o governo que emana mantém o respeito com a autoridade, castiga o mal segundo as ordenanças divinas, se esforça em não encobrir a culpabilidade ou responsabilidade de governantes e governados, mantém a santidade do matrimônio e o caráter sagrado da família humana, guarda o Dia do Senhor, promove a filantropia, honra a Igreja e sua missão no mundo e, de outras muitas maneiras dá amostra de estar impregnado do espírito cristão.[4]


Mas, sob uma terceira acepção o termo cristão pode se referir ao estado: quando Cristo é reconhecido como senhor do estado, tal como o é da Igreja; e isto de tal maneira que todos os membros do governo se consideram como instrumentos de sua vontade. Vários grupos na Igreja cristã mantêm esta posição: os arminianos, os erastianos, os católicos romanos, etc. Todos estes sustentam que Cristo é cabeça do estado como o é também da Igreja. Na aplicação deste princípio chegam, todavia, a diferentes conclusões. Recorrendo a certas passagens da Escritura pretendem provar que Cristo também foi feito cabeça do estado. Citemos isoladamente somente alguns versículos da Escritura que fazem referência à autoridade universal de Cristo. No quarto Evangelho, João disse: “o Pai ama o Filho e todas as coisas foram colocadas em sua mão” (Jo 3:35). Em Jo 17:2 ensina que ao Filho foi dado o poder sobre toda a carne. É conveniente notar e um modo especial que, segundo Mt 28:16-20, Cristo antes de ascender aos céus, declarou: “toda autoridade me foi dada nos céus e na terra, portanto, ide e fazei discípulos de todas as nações … ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado”. Pois, se a Cristo lhe foi dado autoridade tanto no céu como na terra, não deveria o estado, do mesmo modo que a Igreja, reconhecer a Cristo como o seu rei, bem como promover – como parte de sua missão – a causa da verdadeira Igreja de Cristo?


Nos tempos do Sínodo de Dort, em 1618, os arminianos defenderam este ponto de vista. Geralmente se crê que a diferença entre arminianos e calvinistas se se concentra na eleição e no livre arbítrio; mas, outra questão que também se discutiu ardorosamente neste concílio foi se o estado tinha ou não autoridade sobre a Igreja; e em caso afirmativo, estabelecer até que ponto o governo civil poderia exercer a sua autoridade. Os arminianos dirigidos por homens tão ilustres como Oldenbarneveld e Hugo Grotius, mantiveram que, ainda que a Igreja tenha o direito de formular a sua própria posição doutrinária, é prerrogativa do estado exercer governo sobre a Igreja.[5] Para sustentar este ponto de vista apelaram a passagens bíblicas tais como os que citamos acima. “Cristo é a cabeça tanto do estado, como da Igreja”; portanto, segundo a posição arminiana, o estado deve exercer a autoridade em sua esfera e também na Igreja; somente em matérias doutrinárias os ministros da Igreja têm autoridade para decidir. Dentro da igreja cristã existe outros que vão mais longe do que os arminianos; e segundo eles o governo teria autoridade para decidir não somente nos assuntos externos da Igreja, como também nos doutrinários. Deste modo ressuscitava aquela velha concepção romana, segundo a qual o poder civil não somente representava a autoridade máxima em todas as esferas estatais, como também exerceria o pontificado supremo na religião do estado (Pontifex Maximus).


Quando no século IV, o governo da antiga Roma aceitou nominalmente o cristianismo, Constantino continuou este costume romano e assumiu a liderança da Igreja, apenas tendo que fazer uma mudança insignificante: de Pontifex Maximus passou a ser Episcopus Universalis (Bispo Universal). Os governantes cristãos que lhe sucederam trataram de manter idêntica posição na Igreja e apelaram aos mesmos textos da Escritura. Pois Cristo tem autoridade sobre toda a carne, eles como representantes desta autoridade sobre a terra, seriam a cabeça visível das duas esferas, entre as quais a sociedade daquele tempo se dividia: o estado e a Igreja. Em nosso tempo os governantes de alguns estados totalitários assumem para o direito de ser considerados como cabeça da Igreja, ainda que para isto não busquem fundamento na Escritura.


A Igreja Católica Romana partiu de uma premissa idêntica: a autoridade de Cristo sobre a terra; mas, chegou a uma conclusão totalmente contrária à que defenderam os imperadores cristãos. O governador do estado não era, simultaneamente, cabeça da Igreja e do estado, senão que tal autoridade recaía no governador da Igreja, ou seja, no Papa. Cristo tem autoridade no céu e na terra; o Papa, por ser o vicário de Cristo na terra, é supremo legislador tanto sobre a Igreja como sobre o estado. Como prova desta suposta autoridade, os papas, ainda em nossos dias, ostentam a tiara, que é uma coroa tríplice que indica o senhorio sobre os três reinos: a Igreja, o estado e o purgatório. Na Idade Média, quando se debilitou o poder do estado e cresceu o da Igreja, esta teoria triunfou, especialmente sob Gregório VII (1075 A.D.).


Onde se encontra o erro de todas estas teorias? Há de se buscar o erro numa exegese deficiente de certas passagens bíblicas relevantes. Certamente a Bíblia afirma que Cristo, o Mediador, tem autoridade sobre toda a carne, e que todo poder nos céus e na terra lhe foi entregue. Todavia, daqui não se deduz que Cristo tenha sobre o estado a mesma autoridade que tem sobre a Igreja. A Cristo lhe foi dado o governo da Igreja e do Reino de Deus. Este governo lhe foi outorgado como recompensa a sua obra mediadora. Deste modo, tal governo entra plenamente na esfera da graça especial. Em toda a amplitude de sua obra redentora ele é supremo e exerce o seu governo através de sua Palavra e de seu Espírito. Cristo disse: “o meu reino não é deste mundo” (Jo 18:36).


Todavia, o estado é uma criação da graça comum de Deus, e não entra sob o governo que Cristo exerce como Mediador e Redentor. A chave para entender esta autoridade que ele exerce sobre toda a carne encontramos em Ef 1:22, onde nos declara que Deus colocou todas as coisas sob os pés de Cristo “e lhe deu como cabeça sobre todas as coisas para a Igreja”. Estas palavras “para a Igreja” delimitam claramente esta autoridade de Cristo sobre toda a carne. Como Senhor da Igreja e do Reino de Deus, Cristo deve protegê-los e dirigir o seu destino através de mundo hostil. Para consumar esta missão Cristo carece de autoridade suficiente para controlar todas as coisas, e seja qual for o rumo que empreendam as forças hostis, Cristo as controlará e fará com que todas as coisas redundem em benefício de sua Igreja e de seu Reino. Inclusive Satanás está sob a jurisdição de Cristo, de maneira que nem as portas do inferno podem prevalecer contra a Igreja. Então, resulta evidente esta autoridade é muito diferente daquela segundo a qual Cristo exerce idêntico governo sobre a Igreja como sobre o estado. O estado, que é uma criação da graça comum de Deus e não da graça especial, certamente sujeitará ao governo do Deus Trino como criador, e neste aspecto está sujeito à Palavra de Deus como norma de vida. Mas não está sujeito a Cristo como mediador da Redenção. Neste último sentido, consequentemente, o estado não pode se considerar propriamente como cristão.[5]


Ao terminar o nosso estudo do ponto de vista calvinista sobre o estado, será bom que façamos um sumário dos fatos estudados. O estado foi originalmente instituído por Deus para a execução daqueles interesses culturais que o povo, em esforço conjunto, haveria de realizar em distinção das tarefas próprias do indivíduo, a família ou outras esferas que poderiam surgir destes interesses privados. O Reino de Deus não encontra a sua continuação no estado de nosso tempo, e sim no reino sobrenatural inaugurado por Cristo; este reino da graça especial terá cumprimento nesta terra após o Dia do juízo. O estado atual é uma solução mecânica, um instrumento da graça comum de Deus; todavia, não realizará os seus fins em oposição ao Reino de Deus, mas, que através da Igreja favorecerá o seu desenvolvimento. A humanidade mesmo após a queda, tem uma série de obrigações culturais para desenvolver. Algumas destas tarefas são de interesse especial para o indivíduo, a família, a Igreja ou para a ciência; assim, não incumbe ao estado o desenvolvimento e cumprimento destas obrigações. Mas há outras tarefas que serão realizadas pelos homens como grupo; e, é aqui onde entra a missão do governo, missão que algumas vezes é mencionada como sendo bonum commune naturale (o bem natural comum). Além do mais, desta missão, o estado, desde a entrada do pecado no mundo, tem a missão de administrar justiça entre os membros da sociedade humana, individualmente e em sua totalidade como grupo. Para realizar esta tarefa, o estado se guiará pela Palavra de Deus, e estar sujeito à soberania do Deus Trino, mesmo que não esteja sob o mediador Cristo, sendo que o domínio do estado não está sob a graça especial, e sim debaixo da graça comum.


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Notas:
[1] H. Henry Meeter, Doutor em Teologia, foi presidente durante 30 anos do Departamento Bíblico do Calvin College, Grand Rapids, MI. Nota do tradutor.
[2] Romanos 13:1.
[3] No contexto dos EUA o termo político liberal se refere a esquerda. Nota do tradutor.
[4] Diepenhorst, P.A., Ons Isolement, p. 33 (Kampen, J.H. Kok, 1935).
[5] Kuyper, A., Gemene Gratie III, pp. 272-273 (Amsterdam, Hoveker & Wormser, 1904).
[6] Bavink, H., Gereformeerde Dogmatik, III, p. 574 (Kampen, J.H. Kok, 1906). Kuyper, A., Gemene Gratie, III, pp. 270, 277, 284-290 (Amsterdam, Hoveker & Wormser, 1904). Também veja o capítulo XVI sobre A relação do Estado com a Igreja.

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Autor: H. Henry Meeter

Fonte: Extraído de H. Henry Meeter, La Iglesia y el Estado (Grand Rapids, TELL, 1963), pp. 111-121. Este livro originalmente foi publicado sob o título de THE BASIC IDEAS OF CALVINISM.

Tradução: Rev. Ewerton B. Tokashiki, em 20 de abril de 2016.

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Esse artigo foi republicado com a permissão de Blog Bereianos

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